sábado, 27 de dezembro de 2014

Animália – Viveiro dos pássaros (2), os grupos se encontram




O metrô estava lotado. Era a hora que muitos bichos saíam de seus monótonos trabalhos e se preparavam para deitar nas cores da noite. É verdade, alguns deles só queriam mesmo era voltar para suas respectivas tocas e descansar. Mas era inegável que em muitos daqueles olhos cansados, daquelas compleições exaustas e rostos abatidos, ainda escondia-se aquela vontade de rasgar das roupas formais, deixar livre as caudas, asas e bigodes para então cair de cabeça naquela noite que começava.




'Se tivéssemos saído antes, talvez não pegássemos o metrô tão cheio', reclamou Enna, de pés, enfurnada num bolo de pessoas. 'Amiga, tenho certeza que meu banho de cinco minutos não interferiu na lotação do metrô', retorquiu o Rennard. 'Gente, é só por alguns minutos. O viveiro não fica longe daqui', disse Plipka, debaixo do suvaco de um homem alto. Duas paradas depois, os três já deixavam o vagão, fazendo um último esforço para abrirem espaço até a saída.

Não estavam mais próximos do centro. Agora caminhavam para dentro dos bairros e labirintos de Animalia, onde as raízes da Mandragora não alcançam e as cores têm mais nomes. As ruas mais escuras, com um fundo colorido de neon servindo de iluminação. Em todo canto, luzes piscavam, assinalando lugares misterioso. Por exemplo, havia um bar com mesas redondas, feitas de uma madeira avermelhada, onde um bando de cães já se encontravam sentados e bebendo. Num outro canto, uma loja de acessórios faiscava sua vitrine de moda alternativa, com manequins sem braços e cabeças posando fabulosamente em seus modelitos incomuns.

Apesar de ainda ser cedo, a noite já começava a sair do berço, preparando-se para engatinhar. Atentando para as horas, Enna tomou novamente as mãos dos amigos: 'Vamos, vamos! Estamos com pouco tempo', e disparou, puxando os dois consigo.

Atravessaram o bar de mesas vermelhas, a loja de moda alternativa, e mais outros tantos estranhos e curiosos estabelecimentos: um antiquário especializado em aparelhos de chá, uma lojinha de produtos naturais, um estande de videntes e cartomantes. Mas não tinham tempo agora de vê-las, ou iriam se atrasar.

Então, após virarem num último ângulo de prédios, puderam ver o Viveiro despontando no final de uma rua sem saída. Ele era um enorme prédio de dois andares, com janelões grandes e portões largos. Toda aconstrução tinha o aspecto de um armazém de carga, mas cuja função tinha sido mudada para a de uma imensa e agitada boate.

'Ah, finalmente!', Enna deixou escapar um suspiro de alívio, conforme os trê se aproximavam. Contudo, seu rosto aliviado crivou-se numa careta contrafeita, 'Argh, quantos pássaros! Eu sei que aqui é o Viveiro, mas não esperava haver tantos assim!'.

Em todo o pátio à frente do Viveiro, inúmeros pássaros chilreavam e batiam suas asas. A grande maioria parecia ser composta de pombos, mas era possível de se ver andorinhas, tucanos, papagaios. Um pavão especialmente belo abria sua cauda de roupas extremamente chamativas, deixando transparecer a nudez de suas coxas. Em outro ponto, um gavião afiava seu bico e empertigava suas penas, assustando os pássaros menores para longe de si.

'Bem, imagino que hoje esteja especialmente cheio por causa do show', ponderou Rennard, olhando em volta. 'Mas é tão curioso esse seu desgosto por outras aves'.

Enna fez bico para o raposo. 'Ora, não é muito diferente do seu desgosto por outras raposas'.

'Eu sei, não estou criticando', Rennard riu com carinho, 'Apenas estou apontando o quão curioso que é isso em você, amiga. Não precisa ficar irritada'.

'Ali estão eles!', gritou Plipka, apontando com o indicador numa direção e correndo. O raposo e andorinha seguiram atrás dela, através da multidão de pássaros. Logo os três puderam ver um grupo de rostos conhecidos despontando.

'Já era hora de chegarem, né?', comentou Farel, o homem à frente do grupo. Era também um raposo, baixo, de pelos encaracolados e cauda bojuda. 'Íamos acabar entrando sem vocês! Por que atrasaram tanto? Pararam para fazer um sexo a três muito louco, foi?'.

'Quem dera', riu Plipka. 'É que o Rennard perdeu o maior tempão lavando o rabo', e então a lagartixa agarrou a cintura dele.

'Ei, falando desse jeito até parece que foi minha culpa!', lamentou-se Rennard.

'Realmente, tadinho. Você não tem culpa de ser rabudo assim', implicou Enna.

Um outro bicho no grupo, uma arara azul bem azulada, resolveu intervir. 'Gente', disse com sua voz um tanto grasnada, 'Eu sei que é legal falar da bunda de Rennard, mas será que podemos fazer isso na fila? Ainda temos que entrar no Viveiro, e quero pegar um lugar bom para assitir ao show!'.

'Certo, Zula', concordou, sempre com sua voz avelulada, o raposo Farel, 'Vamos que vamos, pessoal. Deixamos o resto do grupo lá na frente, na fila, então bora adiantar aqui nosso lado'.

Em seguida, o grupo de cinco bichos seguia caminho em direção da entrada. Uma grande fila se formava do lado de fora, com pássaros se agasalhando em seus casacos e penas para resistir à noite fria que começava a se formar sobre eles. Com os olhos atentos para a multidão, Farel logo reconheceu os amigos na fila.

'Teasly, Flávia, Rubna', disse o raposo Farel, acenando. Os três bichos acenaram em resposta, saudando os outros que chegavam.

Teasly era um morcego mirrado, com tufos de pêlos sobre a cabeça. Era um amigo já de longa data e conhecido de Rennard, Plipka e Enna. Contudo, as outras duas eram colegas da arara Zula, e faziam parte de um grupo com o qual pouco tinham contato. Flávia era uma coruja alta, de penas bem escuras e curtas, usando uma camisa bem larga e uma calça jeans. Já Rubna, usando uma saia prendada que deixava à mostra suas longas pernas, era...

'Oh, você é também uma andorinha?', perguntou Rubna para Enna, fazendo uma pose esvoaçante com os braços.

'Bem...acho que sim', sorriu Enna, desconcertada.

'Ah, mas que legal!', Rubna juntou os dedos, contente. 'Sabe, eu já tinha sido meio gata, depois meio pomba. Passei um tempo cogitando se era uma coelha, mas acho que andorinha cai bem em mim. Meio que me deixa levitante, sabe?'. Enna concordou gentilmente com a cabeça, em silêncio, numa tentativa de impedir que aquele assunto continuasse.

'Enfim, estamos finalmente todos aqui', disse o raposo Farel, 'Agora é só esperar a fila começar a andar'.

'Hei', a coruja Flavia interrompeu, 'Tinha mais dois colegas nossos que ficaram de confirmar se vinham ou não. Talvez devêssemos esperar por eles'.

'Não, amiga', disse a arara Zula num tom acalmante, 'Eles já mandaram uma mensagem para mim dizendo que ficaram presos na faculdade. Não poderão estar conosco'.

'Ah, tudo bem então', concluiu a coruja, pondo-se a olhar distraidamente para todos os novos rostos que estava conhecendo, mas sem dar qualquer parecer, permanecendo confortavelmente em seu estranho e pacato silêncio.

Nisso, Enna continuava inconsolável com sua situação, resmungando baixinho. 'De todos os outros pássaros possíveis, por que tinha que ter uma outra andorinha, afe!'.

O morcego Teasly, prestativo, deu uns tapinhas carinhosos nas costas de Enna. 'Não fique assim', disse ele, 'Rubna só estava tentando puxar um assunto para se enturmar. Ela não tinha como saber do seu desgosto de ter que lidar com outros pássaros'.

'Argh, eu sei', e Enna olhou para Rubna, para as pernas longas dela, para seus movimentos leves, seu sorriso serelepe, e suspirou pesado, 'Mas tinha que ser uma droga de andorinha? Que ela fosse um pombo, ou falcão, ou garça, ou sei lá!'.


Pouco tempo depois, os portões se abriram e a fila começou a andar. Através das portas já era possível de se escutar a música pulsando lá dentro, e as luzes de vários tons dançando no ar.

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