O metrô estava lotado. Era a hora que muitos bichos saíam de seus
monótonos trabalhos e se preparavam para deitar nas cores da noite.
É verdade, alguns deles só queriam mesmo era voltar para suas
respectivas tocas e descansar. Mas era inegável que em muitos
daqueles olhos cansados, daquelas compleições exaustas e rostos
abatidos, ainda escondia-se aquela vontade de rasgar das roupas
formais, deixar livre as caudas, asas e bigodes para então cair de
cabeça naquela noite que começava.
'Se tivéssemos saído antes, talvez não pegássemos o metrô tão
cheio', reclamou Enna, de pés, enfurnada num bolo de pessoas.
'Amiga, tenho certeza que meu banho de cinco minutos não interferiu
na lotação do metrô', retorquiu o Rennard. 'Gente, é só por
alguns minutos. O viveiro não fica longe daqui', disse Plipka,
debaixo do suvaco de um homem alto. Duas paradas depois, os três já
deixavam o vagão, fazendo um último esforço para abrirem espaço
até a saída.
Não estavam mais próximos do centro. Agora caminhavam para dentro
dos bairros e labirintos de Animalia, onde as raízes da Mandragora
não alcançam e as cores têm mais nomes. As ruas mais escuras, com
um fundo colorido de neon servindo de iluminação. Em todo canto,
luzes piscavam, assinalando lugares misterioso. Por exemplo, havia um
bar com mesas redondas, feitas de uma madeira avermelhada, onde um
bando de cães já se encontravam sentados e bebendo. Num outro
canto, uma loja de acessórios faiscava sua vitrine de moda
alternativa, com manequins sem braços e cabeças posando
fabulosamente em seus modelitos incomuns.
Apesar de ainda ser cedo, a noite já começava a sair do berço,
preparando-se para engatinhar. Atentando para as horas, Enna tomou
novamente as mãos dos amigos: 'Vamos, vamos! Estamos com pouco
tempo', e disparou, puxando os dois consigo.
Atravessaram o bar de mesas vermelhas, a loja de moda alternativa, e
mais outros tantos estranhos e curiosos estabelecimentos: um
antiquário especializado em aparelhos de chá, uma lojinha de
produtos naturais, um estande de videntes e cartomantes. Mas não
tinham tempo agora de vê-las, ou iriam se atrasar.
Então, após virarem num último ângulo de prédios, puderam ver o
Viveiro despontando no final de uma rua sem saída. Ele era um enorme
prédio de dois andares, com janelões grandes e portões largos.
Toda aconstrução tinha o aspecto de um armazém de carga, mas cuja
função tinha sido mudada para a de uma imensa e agitada boate.
'Ah, finalmente!', Enna deixou escapar um suspiro de alívio,
conforme os trê se aproximavam. Contudo, seu rosto aliviado
crivou-se numa careta contrafeita, 'Argh, quantos pássaros! Eu sei
que aqui é o Viveiro, mas não esperava haver tantos assim!'.
Em todo o pátio à frente do Viveiro, inúmeros pássaros chilreavam
e batiam suas asas. A grande maioria parecia ser composta de pombos,
mas era possível de se ver andorinhas, tucanos, papagaios. Um pavão
especialmente belo abria sua cauda de roupas extremamente chamativas,
deixando transparecer a nudez de suas coxas. Em outro ponto, um
gavião afiava seu bico e empertigava suas penas, assustando os
pássaros menores para longe de si.
'Bem, imagino que hoje esteja especialmente cheio por causa do show',
ponderou Rennard, olhando em volta. 'Mas é tão curioso esse seu
desgosto por outras aves'.
Enna fez bico para o raposo. 'Ora, não é muito diferente do seu
desgosto por outras raposas'.
'Eu sei, não estou criticando', Rennard riu com carinho, 'Apenas
estou apontando o quão curioso que é isso em você, amiga. Não
precisa ficar irritada'.
'Ali estão eles!', gritou Plipka, apontando com o indicador numa
direção e correndo. O raposo e andorinha seguiram atrás dela,
através da multidão de pássaros. Logo os três puderam ver um
grupo de rostos conhecidos despontando.
'Já era hora de chegarem, né?', comentou Farel, o homem à frente
do grupo. Era também um raposo, baixo, de pelos encaracolados e
cauda bojuda. 'Íamos acabar entrando sem vocês! Por que atrasaram
tanto? Pararam para fazer um sexo a três muito louco, foi?'.
'Quem dera', riu Plipka. 'É que o Rennard perdeu o maior tempão
lavando o rabo', e então a lagartixa agarrou a cintura dele.
'Ei, falando desse jeito até parece que foi minha culpa!',
lamentou-se Rennard.
'Realmente, tadinho. Você não tem culpa de ser rabudo assim',
implicou Enna.
Um outro bicho no grupo, uma arara azul bem azulada, resolveu
intervir. 'Gente', disse com sua voz um tanto grasnada, 'Eu sei que é
legal falar da bunda de Rennard, mas será que podemos fazer isso na
fila? Ainda temos que entrar no Viveiro, e quero pegar um lugar bom
para assitir ao show!'.
'Certo, Zula', concordou, sempre com sua voz avelulada, o raposo
Farel, 'Vamos que vamos, pessoal. Deixamos o resto do grupo lá na
frente, na fila, então bora adiantar aqui nosso lado'.
Em seguida, o grupo de cinco bichos seguia caminho em direção da
entrada. Uma grande fila se formava do lado de fora, com pássaros se
agasalhando em seus casacos e penas para resistir à noite fria que
começava a se formar sobre eles. Com os olhos atentos para a
multidão, Farel logo reconheceu os amigos na fila.
'Teasly, Flávia, Rubna', disse o raposo Farel, acenando. Os três
bichos acenaram em resposta, saudando os outros que chegavam.
Teasly era um morcego mirrado, com tufos de pêlos sobre a cabeça.
Era um amigo já de longa data e conhecido de Rennard, Plipka e Enna.
Contudo, as outras duas eram colegas da arara Zula, e faziam parte de
um grupo com o qual pouco tinham contato. Flávia era uma coruja
alta, de penas bem escuras e curtas, usando uma camisa bem larga e
uma calça jeans. Já Rubna, usando uma saia prendada que deixava à
mostra suas longas pernas, era...
'Oh, você é também uma andorinha?', perguntou Rubna para Enna,
fazendo uma pose esvoaçante com os braços.
'Bem...acho que sim', sorriu Enna, desconcertada.
'Ah, mas que legal!', Rubna juntou os dedos, contente. 'Sabe, eu já
tinha sido meio gata, depois meio pomba. Passei um tempo cogitando se
era uma coelha, mas acho que andorinha cai bem em mim. Meio que me
deixa levitante, sabe?'. Enna concordou gentilmente com a cabeça, em
silêncio, numa tentativa de impedir que aquele assunto continuasse.
'Enfim, estamos finalmente todos aqui', disse o raposo Farel, 'Agora
é só esperar a fila começar a andar'.
'Hei', a coruja Flavia interrompeu, 'Tinha mais dois colegas nossos
que ficaram de confirmar se vinham ou não. Talvez devêssemos
esperar por eles'.
'Não, amiga', disse a arara Zula num tom acalmante, 'Eles já
mandaram uma mensagem para mim dizendo que ficaram presos na
faculdade. Não poderão estar conosco'.
'Ah, tudo bem então', concluiu a coruja, pondo-se a olhar
distraidamente para todos os novos rostos que estava conhecendo, mas
sem dar qualquer parecer, permanecendo confortavelmente em seu
estranho e pacato silêncio.
Nisso, Enna continuava inconsolável com sua situação, resmungando
baixinho. 'De todos os outros pássaros possíveis, por que tinha que
ter uma outra andorinha, afe!'.
O morcego Teasly, prestativo, deu uns tapinhas carinhosos nas costas
de Enna. 'Não fique assim', disse ele, 'Rubna só estava tentando
puxar um assunto para se enturmar. Ela não tinha como saber do seu
desgosto de ter que lidar com outros pássaros'.
'Argh, eu sei', e Enna olhou para Rubna, para as pernas longas dela,
para seus movimentos leves, seu sorriso serelepe, e suspirou pesado,
'Mas tinha que ser uma droga de andorinha? Que ela fosse um pombo, ou
falcão, ou garça, ou sei lá!'.
Pouco tempo depois, os portões se abriram e a fila começou a andar.
Através das portas já era possível de se escutar a música
pulsando lá dentro, e as luzes de vários tons dançando no ar.
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