sábado, 27 de dezembro de 2014

Animália – Viveiro dos pássaros (2), os grupos se encontram




O metrô estava lotado. Era a hora que muitos bichos saíam de seus monótonos trabalhos e se preparavam para deitar nas cores da noite. É verdade, alguns deles só queriam mesmo era voltar para suas respectivas tocas e descansar. Mas era inegável que em muitos daqueles olhos cansados, daquelas compleições exaustas e rostos abatidos, ainda escondia-se aquela vontade de rasgar das roupas formais, deixar livre as caudas, asas e bigodes para então cair de cabeça naquela noite que começava.

Animalia - O viveiro dos Pássaros (1), o trajeto




A campainha tocou e a andorinha Enna levantou-se do sofá da sala para ir atender a porta. Do outro lado, a lagartixa Plipka mostrava-se leve e saltitante, soltando um alegre 'Oii'.

'Chegou cedo', comentou Enna, convidando a amiga para entrar no apartamento, 'Pode ir se sentando, ainda não estamos prontos'.

'Ah...', a lagartixa soltou um muxoxo, 'Mas quanto antes chegarmos no Viveiro, melhor! Já liguei para Farel, e ele disse que está a caminho, junto com o resto do pessoal. Se demorarmos muito, vamos acabar perdendo as apresentações!'.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Animalia – O cobra e o coelho




'O que rima com vermelho?', perguntou o jovite coelho, suas longas pernas esticadas no chão. Ele escrevia num caderninho algumas linhas de texto, parecendo ser o rascunho de um poema.

'Ora, coelho!', respondeu o cobra, enquanto passava os dedos entre a bunda do coelho, sorrindo malvado. O pequeno deu um pinote, virando-se sobressaltado para trás. Seus olhos avermelhados encontraram os do cobra, sentidos. 'Não faça isso do nada, eu não gosto'.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Lobas de Sangue (2) - Caolha




A mulher reclinava o corpo em direção ao regato. As águas calmíssimas permitiam-na ver refletida, em todos os detalhes que quisesse, a imagem de seu rosto. Sim, podia ver cada traço, cada uma de suas inúmeras marcas: as inúmeras rugas que desenhavam seu rosto jovem, ganhadas através de uma procissão ininterrupta de dores e sofrimentos; as muitas falhas e amassados, provenientes de golpes duros que lhe deformaram os ossos; as várias cicatrizes finas, últimos resquícios do ferro das lâminas que riscaram-lhe. E, coroando toda essa pintura facial grotesca, podia ver aquela fenda horrível, aquele buraco vazante e sangrado onde um dia ficara seu outro olho, agora sempre doendo, sempre doente, sempre pulsando.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Bate papo com os leitores - Véspera de véspera de natal



Heia pessoal,

Vendo natal se aproximando, juntamente com o fim de ano mais à frente, gostaria de fazer um post mais direcionado a vocês, leitores. Até fico um tanto surpreso com isso em ver que um blog tão desconhecido como esse tenha alguns leitores assíduos. Logo, gostaria de falar um pouco sobre como foi esse ano para minha escrita, imaginando vocês se interessarem, e, ao final, fazer uma pequena proposta a vocês.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Animalia – Dona Sora Consuelo




'Hoje é dia de chuva, hoje é dia de frio. Hoje é dia em que os lobos uivam com os ventos e se tornam fumaça. Hoje é dia que raios cruzam com nuvens e molham a terra. Hoje é dia em que as pedras afundam na areia encharcada e criam montanhas. Portanto, se aproximem, adultos e pequeninos, se aprocheguem filhotes e jovites, que hoje a Consuelo vai contar de segredos sussurrados pelo gelo, das regras ocultas das ruas, da textura das do asfalto rachaduras e das cores que têm os arco-írises no escuro'

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

As lobas de sangue (1)



O homem abriu os olhos numa crispada de agonia, como se as pálpebras fossem pólvora estourando. Sua respiração estava rápida, cortada, o peito inchando e esvaziando desritmado e réptico. Sua mente borbulhava como se fervendo, num turvilhão de dor. Imagens aproximavam-se da superfície de seus pensamentos – gritos, estandartes flamulando ao vento, mais gritos, formas ambulando na noite, golpes – mas rapidamente se desfaziam conforme a bolha da imagem estourava na orla da mente, ardendo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Poema 9 - Me chupa



Me chupa


'Me chupa', sussurraste à voz miúda
Teus olhos enluarados me sarrando
E o corpo lentamente aproximando
Calou de ventre a ventre a tez desnuda

'Me chupa', repetiste enquanto acuda
A mão em meus cabelos, me puxando
E então mais uma vez, me arranhando
Roçaste o ventre quente à pele muda

Em resposta, co a língua vou seguindo
A linha do seu corpo alegremente
Até as tuas pernas ir abrindo
E co a boca encharcada, num gracejo
Levanto lá das coxas sorridente
E digo, 'Vai, me chupa!', em meio a um beijo

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domingo, 30 de novembro de 2014

Animalia - ...Mandragora...




Escuridão. Nela, infinitas indistinções se atracavam, em uníssono, como numa sinfonia surda de gestos e sinais, como um coração que podia bater em silêncio, ininterrupto e ineximível. Mas da harmonia vazia, uma voz gritante irrompe: 'O escuro é insondável'. E outra, gritante, complementa: 'Então, para que nos possamos apontar, haverá luz'.

Flash! Clarão. Infinitas indistinções de forma agora se arrastavam e se escondiam do enorme holofote que fora ligado. Eram amálgamas de panos, tecidos e carnes. Suas cores múltiplas, para além dos números. Algumas eram rajadas de estrelas, outras eram farpas de vento. Na superfície de suas peles, escorriam rios, águas que se transmudavam a todo instante.

E, novamente, a voz gritante diz: 'A multidão das formas é caótica e má'. E a outra, gritante, complementa: 'Então, para que possa haver definição, haverá somente duas corretas'. E as duas vozes no centro do holofote rasgaram os panos, tecidos e carnes de si, ficando ali nuas, magras, altas, brancas, fantasmagóricas pela luz, de pé. Com olhos de vidro e plástico, olhavam a miríade de outras silhuetas que, ainda pasmas, tentavam proteger-se da luz.

Apática e mecânica, continuou uma voz: 'Às duas formas corretas se dará nomes, justiça, e o direito à luz. Ao resto, indiscernível, haverá a doença'. E, grunhindo, as criaturas disformes se viraram para a orla da luz, se escondendo, fugindo, existindo como atentados à lei e ordem. E a outra voz, observando o palco esvaziar-se, completou: 'E uma das duas formas será mais correta e mais justa', e, com seu corpo maior e suas mãos brancas, obrigou a primeira a empinar-se.

E ele, sobre ela, continuou: 'E quanto às formas, o nome delas será sexo', e puxou os pelos dela, 'E a expressão delas será sexo', e chocou-se contra as costas dela, 'E o encontro delas será sexo!', e gritou mais alto que as lágrimas dela. De súbito, a soltou, deixando-a ir ao chão de joelhos, 'E o erro dela será sexo', pontuou.

Virando-se para o chão, ele tomou restos das peles e panos e os jogou sobre ela, com descaso, 'Toda nudez que não propicie prazer será velada em sombras'. Ela, de joelhos, repetiu o que fora por ele dito, de maneira baixa, despondente, desalmada. E então, ambos se vestem. Daí, ele continua, 'Haverá desejo sexual, e somente pelo corpo, e somente pelo sexo oposto. E assim será bom'. Ela, ouvindo, repetiu, baixinho, fraquinho. E ele, virando-se para todos os escutantes na escuridão, bradou: 'E todos, ao nascerem com formas, farão parte do sexo, e terão nome e justiça. E assim será bom'. E muitas formas indistintas se afastaram da escuridão, rasgando suas peles como podiam, tentando – sem conseguir – ser iguais aos dois fantasmas altos, de pelos brilhantes que ali estavam no centro do holofote. Era um horror de corpos deformados que rastejavam em volta dela, ajoelhada, e Dele, de pé.

E ele, falando a todos, seguiu: 'E como assim tudo é bom, toda discussão contrária será vista como hostil. Toda insinuação e toda palavra serão vista com desgosto, raiva, pavor ou piada. E assim é bom, e assim é justo'. Ele olhou para ela, e, novamente, ela repetiu as palavras dele, sem vida e, como num eco, também todas as outras formas mutiladas, igualmente, repetiram as palavras dele e dela. E ele, enfim, virando-se para todos, finalizou: 'E assim, com tudo tendo seu lugar e seus conformes, que haja dia!'.


E o holofote raiou-se por todos os cantos, como raízes que vassalavam todas as animadas almas.

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(Obs: Haec offero ad noctam quae primo cogitavit; ou, em outras palavras, este texto vai para a coruja que primeiro o pensou e que eu, interessado, desenvolvi, =3)

sábado, 29 de novembro de 2014

Animalia – Num bar no alto bairro 4, Vento e Chuva

Animalia – Num bar no alto bairro 4, Vento e Chuva



'Enna!', o raposo dizia alto, tentando aproximar-se da andorinha que se evolava pelas ruas e becos. Deixando para trás os bares, a algazarra e a sombra esfumaçada do unicórnio, o raposo fez o que pode para alcançar a ágil andorinha. Mas quanto mais se esgueirava pelas paredes estreitas, mas via a silhueta dela sumindo no limite de sua visão. Quando já desistia de conseguir alcançá-la, viu-a sentada num banco de concreto numa praça quase vazia. Aproximou-se discreto, tocando suavemente o ombro da amiga. 'Enna?', falou com a voz receosa.

A andorinha soltou um suspiro longo e pesado. Não o suspiro de alguém triste, mas sim de alguém extremamente aborrecido. 'Mas que noite desastrosa', comentou finalmente após um longo intervalo em que simplesmente apertava a ponta dos dedos contra as têmporas. Então levantou o rosto para encarar o raposo que a estava olhando, 'Você consegue acreditar nisso tudo Rennard?'. Encabulado, ainda bastante envergonhado com o que se passou, o rapaz ficou em silêncio, observando como a andorinha reagiria. Com descaso, ela abriu o peito, apoiando-se nas mãos espalmadas: 'A porra da flor me ignorou. Você viu?'.

Rennard não esperava por aquilo. Imaginou que a andorinha iria explodir para cima dele por tudo que o unicórnio disse. Talvez o acusasse, talvez lhe jurasse ali, naquele momento, ódio mortal. Mas lá estava ela, é verdade, irritada, mas bastante recolecta. Ele ainda não conseguiu falar, apenas observando, um tanto mesmerizado, a compostura misteriosamente comedida da amiga. A jovem virou os olhos claros para os escuros do amigo e, percebendo a extrema tensão que neles havia, deu uma risada. 'Relaxa essa bunda, cara. Está tudo bem'.

Os ombros de Rennard desceram da posição travada. Ainda não podia realmente no que acontecia, que toda aquela bomba tivesse sido desarmada, que a andorinha estivesse tão leve. Virnado o pescoço em confusão, perguntou trêmulo, 'Tudo bem? Mas...e o unicórnio?'. Ela estalou o bico, 'Bah, deixa disso, relaxa' e, mostrando a sinceridade no sorriso de seu bico, ela confirmou, 'Sim, está tudo bem'. Com esta última confirmação, o raposo desabou ao lado da amiga, abraçando-a tão apertado que quase fez o ar chiar em seu pulmão. 'Querido, assim vai quebar minha asas!'.

O raposo afrouxou o aperto de seus braços e, com o focinho, percorria agora entre os cabelos da andorinha, bijando-lhe as bochechas com carinho triplicado. Sua cauda felpuda abanava e roçava nas canelas da amiga, 'Sua linda!'. A andorinha por alguns segundos fez-se de rabugenta, como que num jogo, fingindo não gostar. Mas era apenas uma brincadeira já antiga entre os dois e logo era toda sorrisos e oferecia a pele às carícias de Rennard. E o raposo sentou nos joelhos, ficando ao lado da andorinha, seu peito comprimindo-se contra o ombro da amiga, seus lábios beijando o topo da cabeça e descendo, pelo rosto, pelo nariz, demorando-se nos lábios. E repetiu, baixinho, 'Sua linda', com os lábios colados nos dela, o som saindo abafado por entre os beiços. Desceu, beijando-lhe o pescoço, lambendo-lhe, lentamente. Então, num rompante súbito, ergueu o rosto e fitou-a nos olhos, sorriu, levantou-se dos joelhos e, delicadamente, sentou-se no colo dela, com as coxas voltadas para a cintura dela e as pernas se cruzando nas costas da andorinha. Olhando demoradamente nos olhos claros de Enna, Rennard diz: 'Obrigado amiga'. Em seguida, deita a cabeça no ombro dela, deixando os cabelos caírem como cortinas sobre si, 'Eu não sei como iria aguentar caso você tivesse se machucado, caso você me viesse acusar...'.

A andorinha sorriu, mas manteve um semblante sério. Entrelaçou os dedos na mão de Rennard e, com naturalidade, falou, 'Amigo, eu me machuquei'. Rennard contraiu-se um pouco no colo dela, contrafeito, 'Oh...desculpe'. Mas a andorinha balançou a cabeça, 'Ow, não se preocupe. Não foi nada sério, eu estou bem. Só não vou fingir como se não tivesse me magoado, entende?', e então bagunçou-lhe os cabelos, 'Eu conheço o unicórnio, e sei quão violentas as palavras dele podem ser. Mas, acima de tudo, eu te conheço. E sei o quão sinceras e carinhosas as suas palavras são'. O raposo sorriu rebrilhante e comprimiu com as coxas a cintura da andorinha, 'Ah, pára, Enna! Quer me fazer chorar, é?'.

Novamente, os olhares dos dois se encontraram e em silêncio permaneceram por algum tempo, como se mergulhassem um no outro. O vento ao redor aumentava gradativamente, o concreto do banco esfriava. Com os dedos ociosos, o raposo enrolava o cabelo da andorinha, 'Queria ser mais sexual', comentou, baixinho, num muxoxo meio amedrontado, meio tenso, 'Os outros bichos parecem enfeitiçados quando falam disso, sabe? Parece mágico, como se abalroasse o ser por completo. E se eu fosse mais sexual, talvez você não precisaria ouvir essas coisas do unicórn...'. A andorinha cortou Rennard beijando-lhe a boca. E foi tão súbito e forte que ele deu um saltinho, sua respiração cortada em meio pulso. Quando ela afastou os lábios, ele ainda gemia baixo. Ela percorreu os dedos em seus cabelos, apertando-lhe a nuca e falando com amor, desejo e uma divertidíssima ironia: 'Sabe amigo, às vezes tenho a impressão de que você me imagina como uma máquina de avassalar genitálias!'. O raposo riu do comentário entre gemidos fortes, conforme a andorinha apertava sua nuca com uma mão e com a outra lhe alisava os peito, 'Eu não sou tão assustadora assim, sou?'. Se recompondo um pouco, Rennard fala, arfando, 'Talvez um pouquinho, Enna. Mas eu só disse isso porque, caso eu fosse assim, caso eu fosse mais como os outros, talvez fosse melhor. Talvez...', e novamente a andorinha interrompeu-o com um beijo. Desta vez mais profundo, a língua dela empurrando contra a dele, o raposo chegou a tremer nos braços dela.

'Não se martirize com pensamentos assim, querido. Todos se indagam a todo momento, todos têm dúvidas. E ficam se acusando, fazendo esse fantoche de sombras. Mas não importa o que digam, ou o quanto o unicórnio queira enfiar seu chifre onde não é chamado, devemos ser como podemos ser, na medida da abertura de nossas asas. Foda-se se isso vai contra os padrões do centro, das ruas ou dos becos!'. Rennard sorria com as palavras dela, envolvendo-lhe o pescoço com os braços, 'Nossa, de onde veio essa afirmatividade toda, amiga?'. A andorinha riu com um tantinhozinho de preopotência, 'Ah, você sabe Rennard. Eu vi muitas coisas, andei por muitos lugares, e aprendi algo aqui e ali. Por exemplo, já amaste com os insetos? É uma experiência de abrir os olhos, hehe'. Rennard, surpresíssimo com o comentário da amiga, cutucou-lhe as costelas, 'Enna, mas o que é isso? Agora você é minha heroína!', falou brincando.

'Heroína? Que nada. Não é para tanto'. Subitamente, o sorriso da andorinha tomou proporções taciturnas. Ela virou o rosto para baixo, silenciosa, 'Sabe, nessa noite eu só queria...que Sândalo não tivesse me rejeitado. Ou, se rejeitado, que não tivesse sido assim, sabe? Eu estava lá, entregue, jogada. O perfume dela, sua pele macia, aquela cintura, aquelas pernas. E mesmo que eu apertasse, arranhasse, mordesse, ela me ignorava. Foi tão ruim, tão...vazio', e a voz dela tomou profundidas tétricas de tristeza. 'Parece que caímos justamente quando temos certeza que estamos seguros. É como se...'.

E dessa vez foi o raposo que interrompeu a andorinha com um beijo. Ficaram ali, com as línguas dançando, por alguns momentos. Finalmente, o raposo diz enquanto se afastava, 'Amiga, relaxa, está tudo bem'. Os olhos da andorinha encheram-se de lágrimas, 'Agora é você que me quer fazer chorar, querido?'.

Os dois sorriam. Os ventos agora eram tão altos que gritavam em seus ouvidos. Gotas geladas de chuva começavam a salpicar-lhes os corpos. Os outros bichos abandonavam rapidamente a praça, fugindo da tempestade que se aproximava. Primeiro em gotas chuviscadas, depois numa torrente pesada, logo andorinha e raposo se tornavam quase indistintos das poças de água no chão de concreto da praça.

'Ai, minha bunda está congeladaa!', falou a andorinha, rindo, encharcada, ainda com o raposo sentado em seu colo. 'Ah, é?', disse Rennard malicioso, com as patas indo até as nádegas da andorinha e apertando, 'Realmente está. Mas a minha também, olha', e, segurando nas mãos da amiga, levou-as até seu próprio rabo, 'Está vendo?'. Enna, com malvadeza no olhar, apertou forte e riu, 'Realmente, tá gelada. Mas eu posso esquentá-la'. O raposo abriu um sorriso de safadezas, olhando-a com desejo. 'É mesmo?', perguntou, escondendo o rosto nos cabelos dela, 'Então vai, me esquenta'. A andorinha puxou-o pela cintura, colando seu ventre no de Rennard. Este, num gemido sufocado nos cabelos dela, diz sem ar, 'Te amo'. E a andorinha, com as mãos entrando pelas calças dele, responde, num pio de eco, 'Te amo'.


E a chuva caía forte em lufadas de vento, molhando os dois até escorrerem um no outro.

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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Animalia – Dia...

Animalia – Dia... 28 11 2014





(Obs: esse capítulo é bastante pesado. Além disso, para entender suas nuances e seu impacto, é importante que você tenha pelo menos lido boa parte dos capítulo de Animalia. O leitor foi avisado)

'Você não vai descer?', perguntou a menina de cabelos marrons, brunos. O sino do intervalo tocava insistente e alto, colocando em disparada as várias crianças para fora da sala de aula. Mas o menino de dedos finos a quem dirigia a voz continuava parado, mexendo em alguma coisa dentro da mochila. A menina colocou as mãos na cintura e empertigou-se, 'Ei! Vamos descer, já bateu o intervalo! Quero comer alguma coisa'. Tirando os olhos da mochila para encarar a bruna, o menino de dedos finos fez um sinal para que esperasse. Enquanto isso, quase toda a 8a série já havia deixado a sala, e a professora terminava de arrumar seus livros para poder descansar.

'Parece cansada hoje, senhorita Dickermann', assim ela foi recebida pelo professor de geografia quando entrou na sala dos professores. Respondeu com uma reverência discreta, deixou seu material sobre a mesa e alcançou o maço de cigarros no bolso. Tomou o isqueiro em mãos, acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda. 'Sempre tão fria, devia sorrir mais. Fica tão deselegante desse jeito', novamente o homem dirigiu-lhe a palavra, com ares de doçura e pintalgada de meias desculpas. Ela fechou os olhos e suspirou, exalando a fumaça do cigarro sobre si. Era esperado sempre que andasse em sorrisos, sempre respondesse às piadinhas com delicadezas – não sabia como as suas colegas conseguiam. Vai ver fazia parte da evolução, de adaptar-se ao meio e aceitar seu papel nas coisas como são. Mas nunca conseguiu fazê-lo – nunca quis, e nunca suportou a ideia. Virou-se para trás e percebeu o olhar do professor de geografia rapidamente mudar de foco, desviando de onde provavelmente estava – as suas pernas, bunda, quadril? - para poder encará-la desajeitamente nos olhos. Num sorriso ranhento, tropeçando num sem-jeitismo nas palavras, ele novamente buscou alguma coisa, 'Tem tido problemas em casa, senhorita? Está realmente com uma cara de quem precisava sair mais, se divertir'. A mulher puxou outra tragada. Era claro que ela tinha que sair, pois assim estaria mais apresentável, menos feia, rabugenta, sim? Isso também era esperado, também era exigido. Com sua postura apática, inerte, olhos cravejados de olheiras, ela fitou profundamente o homem e, num tom feio, disse: 'Às vezes você não tem medo de como as coisas estão?'. Pego de surpresa, o homem deu um sobressalto, 'Como assim? Medo de quê?'.

O sinal ainda tocava, e as crianças ainda, feito manada, se derramavam sobre as escadas. Um menino da 8a série, gordinho e de cabelos com caracóis, descia os degraus sozinho em meio à multidão. Num dos corredores entre os andares, uma voz pesou sobre seus ouvidos, 'Hei!'. Soava autoritária e demandava toda a atenção. Não que ele quisesse isso. Queria descer, esconder-se entre as mesas, comprar o lanche, comer esquecido para depois voltar para a sala e ficar lá, sem incomodar, sem ser encontrado. Mas não tinha escolha. Virando o rosto, amedrontado, percebeu o rapaz alto do 2o ano com os braços levantados e apontando para si. 'Venha cá, gordo', ordenou. O menino parou no meio das escadas, quase sendo atropelado pelas outras crianças. Ele ponderou na possibilidade de correr, mas sabia que seria inútil. Não podia fugir. Aquele lugar, aquela escola era prisão, jaula. Não havia escolha, nem havia saída. Com o rosto baixo, seus cabelos de caracóis saltitando, dirigiu-se até o rapaz do 2o ano.

A professora olhou para a expressão sincera de ignorância do homem e deu outra tragada no cigarro: 'Se você não percebe, então quer dizer que não sente medo. Ignore minha pergunta então'. O homem não gostou e gesticulou com as mãos, 'Ora, vamos lá! Não seja tão evasiva após falar uma coisa dessas. Existe alguma coisa da qual eu deveria sentir medo?'. Ela virou os olhos – sentia como se tivesse que explicar a uma pessoa sendo queimada viva porque ela deveria fugir das chamas: 'Nós vivemos nesse mundo como se o próprio ar nos esmagasse'.

No carro, a professora de matemática acompanhava a menina da 6a ou 7a série – sinceramente, a professora não conseguia se lembrar naquele momento – que vinha, timidamente, até o carro. Carregando o caderno contra os seios quase inexistentes, ela parou de fronte ao vidro da janela. Conforme a professora foi baixando o vidro, a menina abria um sorriso trêmulo, 'Professora Aila?'. Com óculos escuros refletores tampando seus olhos, a professora retribuiu o sorriso tímido da menina com um de dentes incisivos e lábios finos, 'Oh, como vai querida? Está procurando por alguma coisa?'. A menina permaneceu de pé, travada, ali do lado de fora, com um aspecto um tanto perdido, embaraçado. 'Bem...eu...', ela montou algumas palavras, mas não conseguiu elaborar nada muito lógico. Ficou ali, sonsa, olhando para a professora, seu coração como uma lixa raspando contra o peito. A professora de matemática, ainda sorrindo, abriu a porta do carro e disse: 'Entra, querida'.

'Respiramos', continuou Dickermann, soltando mais fumaça pela boca, 'mas é como se lentamente fizéssemos isso se tornar errado. Como se o ar fosse nocivo, como se não devêssemos convidá-lo para dentro de nossos pulmões. Cada vez que expandimos o peito, é como se um soco estalasse dentro de nós mesmos, lá no fundo. Assim também o mundo se nos apresenta, como essa coisa, esse treco tão afastado de nós e, ao mesmo tempo, tão imprescindível, que nos encontramos presos a ele. Como numa gaiola'.

O gordinho se esbateu-se contra a parede do banheiro, empurrado pelo rapaz do 2o ano. Estava preso. 'Vamos', o rapaz se aproximou, grande, forte, oprimente, 'Repete o que você disse'. O menino buscou segurar as pernas para não tremer. Seus cabelos encaracolados balançavam em frente aos olhos: 'Repetir o quê?...'. O alto não gostou e o imprimiu com força contra os azulejos sujos, 'Acha que estou de brincadeira? Acha que isto é engraçado, sua bicha!', e deitou um tapa com as costas da mão no rosto do menino. O banheiro estava deserto.

'Por favor, senhorita Dickermann', o professor de geografia já parecia desinteressado, 'Você não vai começar a criticar o sistema, o governo e essa baboseira toda, né? Estamos em intervalo e não estou afim de ficar perdendo o tempo com discussões assim, infrutíferas'. A mulher balançou a cabeça, apagando o cigarro e olhando através da persiana da janela que dava para o estacionamento: 'Fala como alguém que foge. Eu compreendo: a pressão de tudo isso que nos envolve, todo esse ar que nos enforca os pulmões, é incombatível. É mais fácil aceitarmos tudo como é e fechar os olhos para a asfixia que nos infecta. Mas, mesmo que cerremos os olhos e finjamos não ver, as coisas continuam lá, em nós. Ativas. Atentas. Reprimidas. Como feras num circo ou zoológico decadente'.

A menina bruna levou a mão à boca, 'Garoto, guarde isso!'. O menino de dedos finos sorria esguio para ela, enquanto uma cauda felpuda ereta se insinuava por debaixo de seu short. 'Qual o problema? Só tem nós dois aqui na sala', retorquiu, alisando com a mão a cintura da garota. Ela tremeu um pouco, ainda com uma mão sobre a boca, mas a outra agora alisava a ponta da cauda dele, 'Mas não pode na luz, não pode, ain...', ela agachou um pouco com um beliscão dele em sua cintura. 'Ninguém está nos vendo, relaxa'. Os olhos da menina de cabelos brunos meio fecharam conforme sua boca soltava uivos baixos. Sua cauda começava a aparecer, peluda, debaixo do vestido. 'Nossa, você tem um rabão, sabia?'.

Dickermann continuou, 'Vamos criar razões e motivos para justificar essa jaula, todo tipo de explicação – ética, científica, divina – para legitimizar nossas ações. Contudo, quanto mais tentarmos ignorar, quanto mais virarmos o rosto para não ver, mais fundo estaremos cravando esse punhal em nosso peito. Somos nós mesmos que causamos esse sufocamento. Vivemos na linha limite de uma sociedade à beira de um pânico moral, não sabendo como lidar com os problemas que criou para si'.

'Você tem sido uma ótima aluna', disse a professora de matemática, as mãos subindo pelas coxas da menina da 6a ou 7a série. A garota sorriu, afastando as pernas como já o fizera outras vezes para a professora, 'Obrigada...'. Em seguida, a boca da mulher encontrou a da menina, num beijo agarrado. Dentro do carro era escuro pelas janelas de filme preto, profundo. 'Hoje trouxe coisinhas, como havia dito na última vez', falou a professora, abrindo o porta malas do carro e tirando alguns objetos. A menina corou, 'Professora Aila...como?'. Mas a professora de matemática, seus olhos agora tornando amendoados como os de um gato, não deixou a menina terminar de falar. Reclinou o banco dela e disse, 'Apenas deite de bruços, querida'.

O professor de geografia deu uma risada, 'Senhorita, até agora não entendi exatamente onde você quer chegar com tudo isso'. A mulher balançou o pescoço vigorosamente, frustrada, 'Sinceramente...olhe à sua volta, olhe!', e ela abriu os braços, como se tomasse neles o mundo, 'O circo está em chamas'.

Dentro de um dos cubículos do banheiro, o rapaz do 2o ano montava sobre o da 8a série. Os chifres de touro dele roçavam na nuca do gordinho, com ódio, 'Você nunca mais irá ficar de boiolagem de novo, está ouvindo?'. E pontuava as frases com estocadas grosseiras no menino que segurava o choro.

'Vivemos numa sociedade que prefere imaginar uma fantasia de mentiras a confrontar a realidade de seus próprios impulsos'.

'Pára', disse de novo a menina de cabelos brunos, empinada sobre uma das mesas da sala. O menino de dedos finos segurava em sua cintura até sangrar, 'Já está acabando, fica quieta senão podem ouvir'. 'Mas está doendo', grunhiu a menina, recebendo em troca um movimento mais vigoroso contra si.

'E quanto mais tentarmos fingir o que não sejamos, quanto mais fundo enfiarmos a faca em nossa pele, mais forte o que há em nós irá rugir até poder ser ouvido e entendido. Nem que para isso tenhamos que nos rasgar'.

A menina fechava os olhos enquanto a mulher manipulava o brinquedo atrás de si. 'Querida, não sabia que você aguentava tanto assim. Estou impressionada, você realmente sempre foi uma aluna excepcional', dizia a professora. A menina, por sua vez, não falava, não respondia aos toques nem sinalizava. Apenas ficava ali, reclinada sobre o banco do carro, silente.

'Quando os palhaços não mais conseguirem segurar as chamas do circo, o que será que vai acontecer? Talvez seja esse o meu medo', concluiu Dickermann, procurando outro cigarro para fumar.

Novamente, o sinal tocava. O intervalo havia terminado. No banheiro, o rapaz do 2o ano acabava de afivelar o cinto: 'Agora você aprendeu, não é? Se ficar de viadagem de novo, você vai ver'. Então dirigiu-se para, virando-se antes de sair para dizer, 'E vê se tira essa cara de puta do rosto, seu escroto'. E bateu a porta. O menino da 8a série levantou as calças arriadas enquanto chorava baixinho, seus cabelos de caracóis tremendo.

O professor de geografia se despedia da colega, sem esconder o quão enfastiado estava com toda aquela conversa. Dickermann sabia que havia falado para ouvidos desinteressados, mas não se importou. Apagando algumas cinzas do cigarro, disse: 'Lembre-se: Nós somos produto de tudo aquilo que não nos toca'. O professor de geografia em seguida fechou a porta da sala dos professores atrás de si.

Os outros alunos voltavam para a sala, e as pessoas íam tomando seus lugares. A menina de cabelos brunos também ia voltando para sua posição na sala. Sua bunda doía, seu rosto ainda engolia o choro...mas toda a situação, a adrenalina, a proibição, tudo era bom demais. Ela olhou para trás, para o menino de dedos finos e viu que ele também olhava para si. E ela tanto ele sabiam que iriam repetir aquilo novamente.


Sozinha na sala dos professores, Dickermann falava consigo mesma: 'Nós, essas belas criaturas'. Olhou pela persiana da janela e viu uma aluna saindo às pressas do que parecia ser o carro da professora Aila. Dickermann deu uma última tragada no cigarro e uivou, 'Estas belas crias tuas...'.  

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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Animalia – Num bar do Alto Bairro (2), O chifre do Unicórnio



Animalia – Num bar do Alto Bairro (2), O chifre do Unicórnio, 19 11 2014

O Unicórnio: quase sempre invisível, quase sempre no limite de dezessete da percepção, ninguém o avista, e quando o avistam, não o vêem. Mas todos o procuram: consicente, incosncientemente, por cima, por baixo, pelos lados, por dentro, por fora. O Unicórnio é o propósito do significado, a agulha encontrada levianamente encravada no olho, a surpresa letal entre os pulmões num exame médico, o gosto inalcançável do desejo e vício final. E quando o Unicórnio fala, todos se calam. Mesmo o Pai dos Leões, em seu trono dourado, abaixa sua coroa. Mesmo os cervos, senhores das florestas de pedra, mesmo as águias em seus arranha-céus pristinos, todos se reduzem na presença do Unicórnio.

O raposo Rennard caducou em falso, engolindo o ar. Já vira o Unicórnio antes, já estivera em sua presença e até trocara palavras com ele. Mas nunca antes sentira o peso de seu olhar antes, ou a agudeza de suas palavras. Sempre haviam sido outros a serem impalados, caindo de joelhos e tremendo diante do Unicornio fumante dos becos. Mas agora, estando ele debaixo daquele escrutínio, daquela frieza sideral, entendia porque todos escondiam as caudas entre as pernas em sua presença. Rennard não encontrou uma expressão para dar em resposta. Com o rosto travado, num silêncio engasgado, olhou à sua volta. Todos os olhos na mesa oscilavam entre ele e o Unicórnio, silentes, apopléticos, num misto de emoções. As flores Sândalo e Alecrim pareciam preocupadas. A pomba Enna parecia perdida. Leandro, o leão, e Bahssina, a cadela, estavam assustados, apesar de com um misto de empolgação, ansiosos em ver como o raposo reagiria. E Plipka, a lagartixa, ainda dormia serena sobre o ombro de Rennard, mas seu rosto parecia contorcer-se em pesadelos.

Rennard, retornando o olhar ao do Unicórnio, percebeu-o ainda crivado sobre si. Tentou acalmar-se, respirou fundo e sorriu. Numa voz forçada leve pela tensão do momento, retorquiu em pergunta, 'Hipócrita? Eu? Por quê?'. O Unicórnio puxou o fumo do cigarro para a boca e pufou-o no ar, 'Pergunta idiota, preciso mesmo explicar?', fez pausa, olhou para o raposo com acidez triplicada, 'Você vive com essa coxa roçando em meio mundo de bichos. Sempre com essa cauda estúpida no meio das pernas dos outros. Mas nunca te vejo, raposo, montar acima das espaldas das costas de alguém, nem dobrar abaixo da linha dos joelhos. Nem com macho, nem com fêmea, nem com mafeme ou o que quer que exista de bicho, você jamais vai além de um abraço íntimo. E eu ainda conto nos dedos as vezes que você trocou língua com alguém. Mesmo assim, você – raposo das sete cordas graves –, você ainda ousa cantar as suas sacanagens, tocar suas putarescas e entoar suas cantigas de transador, mestre das pernas e das coxas e das virilhas, blah!', o Unicórnio pausou um instante, como se juntasse escanecimento na voz e pontuou, uma vez mais, 'Hipócrita'.

O raposo, sem se deixar amedrontar, manteu o sorriso sereno no rosto, 'Ora, está criticando minha arte? Mas toda arte é expressão, um ponto de vista necessário para entender esse nosso estranho mundo. Por acaso o Unicórnio dos becos está tentando me sensurar a arte bem no meio do Alto Bairro? Por acaso...', mas o fumante não permitiu que Rennard continuasse. Seu semblante torceu-se numa careta de incredulidade e raiva e sua voz arranhada foi cuspida com força no ar:

'Você realmente, realmente está tentando falar de filosofices comigo? Comigo?!', pontuou num grito. Nesse momento eis que então vários animais, de outros bares e outras mesas, começaram a prestar atenção no que acontecia. Um silêncio fantasmagórico estranho começava a pousar ali conforme as percepções se dirigiam para o Unicornio dos becos, a fumaça dos vários cigarros fumados por ele pairando sobre si como nuvens de tempestade. 'Não me tome nunca, nunca, como um tolo qualquer amigo ou conhecido seu. Eu não estou dizendo como você pode meter essa sua porra de arte. Por mim, você pode cantar como iria enfiar a cadeira do bar em todos os buracos de Sândalo até estourá-la por dentro, há!', e o Unicórnio parou. Por um momento mínimo, seus olhos deixaram de pressionar o raposo e voltaram-se para a flor e, neste átimo de segundo, os dois seres trocaram uma intimidade de memórias silenciosas e infinitas discussões. Mas rapidamente o fumante deixou o olhar de Sândalo e virou-se novamente pairando sobre o raposo. 'Por mim, foda-se. Eu não poderia me importar menos. Deixe a censura para a mandrágora e a bunda dela. O que estou realmente falando, raposo Rennard, é que você, suas palavras, ações, insinuações e posturas ainda continuam, independente de arte e expressão, hipócritas. Você se porfia todo nessa aura de coito e transa, quando, no fundo, existe para enganar a todos cuja boca tua toquem. Quantas não deve ter você frustrado almas? Quantos não deve ter você esmagado corações? Você...', e o fumante levantou as mãos no ar, fazendo a forma de estrangulação, apontando para o raposo, '...você me dá nojo'. Fez outra pausa, tragando o cigarro, e pontuou: 'Mas que decepção você deve ser para Lorena'.

Ao ouvirem tal nome, os bichos todos começaram a cochichar. O leão Leandro, como que tivesse recebido um choque, não conseguiu segurar a boca e, intrudindo na conversa, perguntou: 'Lorena? Você estaria falando da “ Lorena Vulpes”?'. O Unicórnio incomodou-se com a intrusão. Mesmo assim, despretensiosamente, respondeu, 'Sim, a própria Lorena Vulpes, a Imperadora da Noite, a primeira entre as raposas. Acontece que esse raposo nojento é precisamente parente dela'. O arrulho de cochichos aumentou com essa nova informação, e o raposo sentiu-se mais sufocado pelo peso dos olhares. O Unicórnio pareceu se divertir com o andar da situação, 'Pois é, parece que ter o sangue da grande copulatrix nas artérias ainda não é suficiente para ensinar um raposo torto a amar. Nojento, patético...uma raposa sem amor'.

No seu canto do bar, apesar do sufoco, o raposo ainda matinha o sorriso. Segurando com delicadeza a cabeça da lagartixa Plipka, que ainda estava em seu ombro, deitou-a suavemente sobre a mesa do bar. Então, em voz baixa, mas firme, encarando tenazmente seus olhos cristalinos de sangue do Unicórnio, disse:

'Meu amor é cinza'. Pela primeira vez naquela noite, a feição severa do Unicornio recuou dois passos. Tragou seu cigarro, pensativo e, seguindo, indagou, 'Cinza? Quer dizer fraco?...Doente?', abrindo um sorriso de dentes afiados feito mármore. Mas o raposo não se incomodou. Balançou a cabeça e respondeu, leve:

'Não, apenas cinza. Isso nem é fraco, nem doente. Cinza é a origem de todas as cores, a semente eterna a devenir. E meu amor é cinza assim. É preciso fazer vir nele as cores, sendo pintado por contatos, sorrisos, ideias'. O Unicórnio massageou a testa, enfastiado. 'Então, em resumo, você está dizendo que você não gosta de ter contato físico com alguém'.

O raposo riu, 'Claro que não, Unicórnio'. Ele pausou um momento e alisou os cabelos de Plipka, que dormia serena na mesa, 'Gosto muito do contato, do cheiro, da sensação de pele com pele. Quanto mais próximo alguém se torna de meu coração, mais próximo quero este de minha carne. A distância entre os corpos reflete a distância entre as mentes e, para ser sincero, é muito difícil não ter um contato assim, junto, com quem me é próximo. Torna-se bastante natural para mim ficar entre as pernas e cabelos destes, dando e recebendo mordidas, lambidas e apertões'. O Unicórnio ia ficando visivelmente transtornado, já cansado daquela conversa 'E no final de contas, você fode ou não?'.

O raposo não conteve uma gargalhada, 'Blah, sim!'. O unicórnio não gostou da risada, mas manteve-se frio, observando. Rennard continuou, 'É verdade que a atração sexual me é bastante secundária, mesmo eu tendo um desejo sensual muito presente. E sim, é verdade que eu prefiro mais dos abraços íntimos e mordidas que o roçar de genitais. Contudo, isso não me impede de gostar de roçar de vez em quando, não é mesmo Sândalo', Rennard deu uma risadinha e a flor, em resposta, piscou para ele. 'Mas não sou hipócrita. Entendo que esse meu jeito e que essas minhas ações possam ter incomodado alguns bichos. Caso realmente eu tenha frustrado desejos e corações, tudo que posso pedir é a mais sincera das desculpas. Apenas meu amor é cinza, e mais sensual que sexual. Peço desculpas se só me arroço com meus amigos mais íntimos'.

Silêncio. Todos agora esperavam a resposta do Unicórnio. Este, com aspecto extremamente desinteressado, apagando o cigarro e já com outro na boca, conclui, 'Em resumo, quanto mais você ache alguém interessante, mais levanta seu rabo até que o bicho, já teu amiguinho, te monte nas costas ou te coma de frente'. O Unicórnio deu outra chupada no cigarro, 'Entendo. Bem, então você não deve ser mesmo amigo de Enna, não é mesmo?'.

Nesse momento, toda a discussão quebrou e as palavras do Unicórnio perfuraram o peito da Andorinha. Esta, aturdida, virou os olhos para os do Unicórnio e percebeu que eles fitavam, sangrentos, os dela. 'Pois é', continuou o fumante, 'Ouvi já das inúmeras vezes que você recusou essa andorinha. E não importa quanto ela pie doce, ou abra toda arreganhada essas asas, você sempre diz não. Deve ser realmente chato ter uma pessoa tola dessas nas suas costa, não é? Que não se manca, que não percebe as dicas'. A andorinha Enna começava e tremer – de angústia? Tristeza? Nervoso? Não dava para saber, mas ela tremia. Todos os bichos olhavam perplexos, e o Unicórnio fumava, rindo, 'Mas olhe pelo lado bom, raposo cinzento. Pelo menos você tem em Sândalo uma verdadeira amiga para foder'. Agora, desviando os olhos vermelhos para a direção de Sândolo, o Unicórnio fala, cruel, 'Me diga, flor, você já fez esse raposo gritar seu nome durante o coito?'.

Ouve-se um engasgar sentido. Então Enna se levanta e sai, escondendo o rosto nas penas dos cabelos. O raposo, pasmo, por um momento hesita mas, logo vai atrás da andorinha. O Unicórnio ri, acendendo outro cigarro. 'Você é um monstro', Sândalo comenta, fria, 'Não aceitou que seu chifre não feria o raposo, tinha que virá-lo para outro'. O fumante não respondeu, ainda com o sorriso frio no rosto. A flor, cansada, levantou-se, 'Orgulhe-se: é mais uma noite que você conseguiu desvirtuar toda a atenção para si. Pois bem', e ela tomou em mãos um copo, 'Um brinde ao Unicórnio fumante e a todos os seus prisioneiros', e bateu o fundo do copo na mesa, quase quebrando. Em seguida, deixou o lugar, sendo acompanhada pelo irmão.


Sem mais vítimas divertidas para furar, o Unicórnio afundou em sua cadeira e, virando-se para a multidão de bichos, ordenou, 'Cuidem de seus rabos agora, virem essas fuças para lá', e, depois, concentrou-se em fumar seus cigarros, desaparecendo num denso fog espectral.

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(Infelizmente, não consegui encontrar uma boa imagem para o unicornio. Ele é de aparência neutra. Mas essa foto mostra um pouco do temperamento do unicornio fumante de Animalia)

domingo, 16 de novembro de 2014

Aparente Nemo (6) - Matre consilium




Parte 6, Matre consilium, 16 11 2014

Um vestido com estampas de flores, predominantemente em tons pastéis e rosados. Ao ombro, caída pela alça larga, uma bojuda bolsa feminina que saltitava conforme Nemo se deslocava em direção ao restaurante, com passos largos e apressados. Olhou no relógio: estava atrasadi...não, atrasada. Nemo estava atrasada. Cinco minutos. Era 13:05, ou 13:06. Então talvez estivesse atrasada 6 minutos? Não importavam as frações, o atraso permanecia, fosse em cinco, seis ou mais minutos. É verdade que uma soma tão pequena de cinco minutos para mais ou para menos raramente constituía atraso nos olhos da maioria das pessoas que poderíamos chamar de 'comum'. No geral, tais liberdades tomadas com os horários eram vistas como modicidade de boa conduta e educação. Mas esse não era o caso, com certeza. Esta pessoa (que com certeza já estava no restaurante há pelo menos meia hora, esperando, calculando e julgando friamente) era – e sempre fora, na verdade – uma coisa de caráter duro, uma chapa de ferro nas costas. Inflexível no trabalho tanto quanto em casa, demandava com um olhar todo o respeito que podia ser merecido. Seus olhos eram punhos feitos para governar sem palavras. Realmente, essa pessoa podia ser chamada de muita coisa – e já o fora ao longo de sua vida, desde nomes respeitosos até as mais terríveis injúrias – mas de forma alguma poderia ser chamada de 'comum'. Às vezes, apesar de raro, até podia ser chamada de...


'Mãe', Nemo sorriu de forma calculadamente respeitosa. Dosou cada canto do sorriso para que tivesse algumas porções de ingenuidade, um tantinho de doçura pueril e um montão de feminilidade. Era como mandava o protocolo da situação. Nemo esperava com todas as forças que a implacável mulher que sentava rígida na cadeira aprovasse sua conduta. Que aquela sua faixada fosse suficientemente sincera (apesar de falsa) para ganhar o consentimento dela. Olhando para o pulso, para o relógio de marca que rebrilhava ofuscante mesmo nas poucas luzes do restaurante, tudo que ela pôde dizer foi, 'Está atrasada'.


Sim, Nemo sabia. Exatamente como fora calculado. Esperava que o erro pelo atraso desviasse a atenção da mãe, mesmo que por alguns momentos, para que não focasse em outros aspectos, em outras críticas, em outras acusações. Em silêncio, muda, Nemo lá permaneceu, de pé. A mulher de terno social ainda olhava para o pulso, para o restaurante, para a mesa – tudo que não fosse aquela rapariga ali, estranha, que laços sociais e sanguíneos obrigavam-na a tratar com parcimonioso decoro. Virou os olhos para a jovem, subindo dos pés à cabeça, e tudo que pôde dizer foi, 'Ainda com o cabelo sujo?'.


Nemo fringiu os dente. Nem quando se perdia nas trilhas no meio do mato, nem quando quebrava os dedos socando as caras de pessoas, Nemo chegava a sentir-se tão desolada quanto quando recebia críticas de sua mãe. Ela, mais que qualquer outra pessoa, sabia das palavras certas para fazer seu estômago descer dois palmos até a base da coluna, tremendo, tonto. Nemo sentiu um impulso terrível de agarrar a própria cintura, de esticar o vestido de flores que separara exatamente para esta ocasião, de alisar os próprios cabelos que com tanto trabalho havia pintado e cuidado pela manhã. Mas conteve-se e permaneceu ali, de pé, com aquele sorriso estúpido no rosto. Como uma boneca muda, tentando perfeitamente parecer de verdade.


Após muitos segundos extenuantes de silêncio sob o olhar acusador da mulher de aço, Nemo foi convidada para se sentar. Ou melhor, ordenada: 'Sente-se', disse a mulher, 'Já pedi nossa comida' – “e você não vai comer de pé feito um animal, não é?” - foi o que Nemo imaginou que sua mãe estava pensando. Sem esperar por outra ordem, a jovem se sentou, com cuidado e delicadeza, feito uma flor; como assim era esperado que fizesse.


A comida não tardou a chegar. Veio expedita, em pratos consecutivos – primeiro uma entrada com salada e pães, depois um primeiro prato de sopa que antecederia um principal de peixe com legumes. Durante todo o expediente, a mulher de aço trocava alguns comentários ácidos com os garçons, com termos estranhos e específicos, críticas pontuais sobre procedimentos quaisqueres. Outro momento, ela mexia em seu celular de última geração, conversando com investidores, colegas de trabalho, delegando ordens e exigindo respostas. Às vezes até mesmo, apesar de raro, comia alguma coisa de seu prato antes que ordenasse ao garçom que o retirasse. Nunca, entretanto, olhava para a jovem em frente que, por coerção social, deveria acusar pelo título honorífico de 'filha'.


Conforme a prosseguia procissão, Nemo ficava cada vez mais inquieta, sua garganta coçando, seus dedos fechando forte nos talheres caríssimos da mesa. Precisava falar alguma coisa. Aquela distância, aquele abismo de galáxias que separava as duas, esfarelava suas entranhas. Tinha que falar, dizer qualquer algo, qualquer coisa...mas o quê? Nada serviria, nada seria bom, nada seria útil. O que poderia dizer que talvez, nem que fosse um pouco, nem que fosse um ínfimo, pudesse trazer alguma resposta naquela mulher – tão próxima, tão distante – que não fosse a de despeito, que não fosse a de escárnio? O tempo ia passando, o almoço ia terminando, e a razão fugia de Nemo. Cada tique e cada taque do relógio era uma alfinetada em sua mente, empurrando-a para agir, puxando, levando...


'Consegui um espaço na galeria da faculdade', disse, finalmente, quando a sobremesa já estava a caminho. A mãe, que encontrava-se absorta com alguma coisa que via em seu celular, por um segundo desviou os olhos em direção à filha. Seria isso um sinal de aprovação? O coração de Nemo saltitou. Aceitaria qualquer brecha possível. Empertigou-se na cadeira e voltou a falar, 'Sim, os professores gostaram muito das amostras que eu mandei. Um inclusive disse que fazia anos que não via um trabalho tão promissor'. A mãe guardou o celular e, com bastante atenção, observou a filha. Nemo sentiu um sorriso genuíno brotando do fundo de seu coração. Sua boca abriu mais, começou a gesticular alegremente e continuou a fala, 'Eu tentei uma abordagem nova, sabe? Algo que sempre costumei fazer na escola, não sei se você se lembra, misturando cores com impressões e, bem, posso dizer que todos ficaram bastante interessados. A exposição será na metade de dezembro, antecedendo a exposição de natal. Eu trouxe até alguns exemplares do que eu fiz', e Nemo alcançou na bolsa alguns papéis com seus desenhos e, sorridente cada vez mais, deitou-os sobre a mesa. Mas a mulher de aço nem mexeu os olhos, continuando-os a fixar sobre Nemo. Olhava-a através dos cabelos coloridos de azul e vinho - e duas mechinhas loiras na frente dos olhos, da mesma cor que a mãe pintava o cabelo da filha quando criança – como quem olhava para uma mancha de queimadura.


'[...]', a mãe chamou Nemo pelo nome, 'Quando você vai parar com essa palhaçada?'. Tudo, completamente tudo – os sorrisos, os gestos, a postura genuína e a leveza do ser – quebrou. Como que por magia, Nemo viu-se agarrada pela alma quando ouviu […] e, vazia, permaneceu atônita diante do julgo da mulher de aço. 'Você tinha tudo', continuou, 'Nome, família, amigos – amigos decentes – casa, emprego. Você era a melhor – e não digo isso por ser minha...', a mulher parou e, antes que pudesse falar a palavra impronunciável, se conteve, '...por ser uma pessoa próxima. Digo isso porque é verdade. E agora vem com essas...essas...', dava para ver que a mulher se esforçava para não xingar, para não dizer uma palavra imprópria, 'essas...inutilidades'. Com as mãos, a mulher empurrou os desenhos, amassando-os. Nemo, muito discreta e insignificantemente, guardou sentida os desenhos na bolsa. 'Você já está velha demais para isso! Quando é que você vai parar com toda essa estupidez de crise adolescente? Quando é que vai ter vergonha na cara e voltar para...', Nemo sabia aonde a conversa estava caminhando e, num rompante desesperado, interrompeu a mãe.


'Não!'. Sua voz soou alto no restaurante, trazendo olhares críticos sobre as duas. A mãe, consternada por ter sido tão grosseiramente interrompida, tentou continuar, '[…]', novamente Nemo sentiu um tapa no rosto quando ouviu seu nome, 'Não me interrompa, menina! Diga quando é que você vai parar com isso e vai voltar para...', e, novamente, Nemo cortou a mãe. 'Não!', e a jovem ergueu o rosto, suplicante, 'Não...por favor...'. As duas ficaram em silêncio. A sobremesa chegou, mas a mulher de aço mandou voltar a dela, 'Não estou mais com apetite', disse ao garçom, 'Termine a sua para que possamos terminar com esta piada de hoje'.


Nemo deitou os talhares sobre a mesa e levantou-se. Ao lado da mãe, de pé, segurou nas mãos dela e, com genuína delicadeza, curvou-se sobre ela e beijou o topo de seus cabelos. 'Te amo', disse, antes de subir o rosto, num sussurro. Então, sem olhar para trás, sem titubear, sem errar a cadeia de passos, saiu.



Na rua, a meia quadra de distância, Nemo sentiu-se estrangulada...estranguladi pelo vestido. Parou. Respirou fundo. Fechou os olhos. Tão sim, foi tirando o vestido, primeiro devagar, mas logo tomando proporções rápidas e frenéticas. Debaixo dele, havia uma camisa branca e um short. Na bolsa, tirou uma calça jeans e um casaco. Vestiu-os, rapidamente. E então, também rápido, prendeu os cabelos longos num coque e, debaixo de um boné, os escondeu. Apesar dos olhares tortos de algumas pessoas na rua, logo ninguém mais percebia aquele garoto comum, magricela, andando incógnito pelas ruas.

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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Animalia - Num bar no Alto Bairro



A encruzilhada do encontro de ruas era um dos pontos mais agitados do Alto Bairro. Consistia de um cluster de bares variados que nunca falhavam de aglomerar multidões coloridas. Toda noite, quando a luz deixava o dia, era algazarra e festa – não importando em qual feira da semana estivesse. Os seres sempre lá se reuniam, desde cedo, desde o primeiro engatinhar das têmporas noturnas, sempre numa diligência respeitável. E então havia música, e havia bebida, e havia canto e dança, e havia língua entrelaçadas e cabelos coloridos – nas cores todas de um arco-íris nas trevas. Hoje, num dos bares mais ao canto de lá da encruzilhada de ruas, estavam a Andorinha e Sândalo a se beijar; ao lado delas, Alecrim cutucava alguma coisa dento de sua bolsa; próximo, um leão conversava perversidades com a cadela Bahssina; na ponta da mesa, o raposo afinava seu baixo elétrico enquanto a lagartixa Plipka lutava para manter-se acordada após terminada mais uma cerveja.

Depois de satisfeito em cutucar sua mochila, Alecrim virou-se para as duas beijantes ao seu lado. Olhando numa censura irônica para a andorinha Enna, pergunta: 'Querida, você está tentando engolir a cabeça de minha irmã?'. Enna afastou-se um pouco de Sândalo, lentamente afastando a ponta de sua língua da dela, e, com o rosto vermelho pelas mordidas da flor, responde: 'Se ficar reclamando muito, a cabeça de sua irserá a única irei engolir hoje'.

Alecrim deu de ombros e sorriu com um desdém afetadinho, 'Hoje eu passo, não to afim de asas de fêmea em cima de mim hoje'. Enna abriu a boca passada, 'Ora, veja só!', colocando as mãos na cintura. Sândalo, que estava embaixo das pernas da andorinha, virou o pescoço e encarou o irmão, 'Poxa! Nenhuma asa de fêmea? E pétala, serviria?'.

'Não, nem pétala. Hoje não quero aroma feminino nas minhas folhas', respondeu Alecrim, olhando para a cabeça virada de Sândalo. 'Nem da sua irmãzinha?', fala a garota, com voz repleta de dengo e as mãos alisando, de cabeça para baixo, o rosto de Alecrim. Este, abrindo um sorriso, diz, 'Bem, crieo que eu posso abrir uma exceção', em seguida descendo a boca até a de Sândalo e trocando com ela beijos.

Quem não ficou contente foi a andorinha Enna por ter perdido a língua com a qual troçava. Ainda sentada no colo de Sândalo, comprimiu a cintura dela com as coxas e apertou-lhe a barriga com as mãos, 'Hei! Eu cheguei primeiro!'. Sândalo suspirou pesadamente com os afagos mas sem desgrudar a boca da de Alecrim. Ficando cada vez mais transtornada, Enna cruzou os braços abaixo dos seios, fazendo bico com seu bico.

'Ei, gente, sem incestualidades aqui, certo? Será que pelo menos não podem fingir ter um pouco de classe?', verberou o leão do outro canto da mesa, com voz fanfarrona e rosto corado pela bebida. Sândalo fez um intervalo da boca de Alecrim para responder, 'Leandro, se não está gostando, sinta-se livre de ir para outro lugar, mas não venha trazer madragorices para cá'. O leão não gostou da cortada, 'Ninguém está falando da mandrágora aqui, ow sua flor. Só acho que tem muitas outras pessoas que você poderia beijar aqui sem precisar ser seu irmão'.

'Concordo com Leandro', falou Enna, com os dedos pentelhando entre as costelas de Sândalo, 'Por exemplo, você pode beijar a mim. Eu cheguei primeiro'. Sândalo se fingiu de desentendida e, agora com mais vigor, voltou a beijar Alecrim, suas mãos arranhando as costas dele. 'Ah, que coisa horrívell! Bahssina, vamos, você concorda comigo, não?', o leão se vira para a cadela, tentando buscar algum apoio. Esta por sua vez coloca as mãos em seu quadril largo, irritada, 'Deixa os dois fazerem o que quiserem Leandro. A noite da Animália é longe das regras da mandrágora, então nem venha com essas críticas idiotas'.

'Mas isso não está certo!', contesta o leão. 'Ah é? Pela mesma ótica, não está certo quando você e seus amiguinhos ficam brincando de montar nas costas uns dos outros, né?', escrutina a cadela Bahssina. 'Não, espera, isso é completamente diferente!', o leão já começava a gaguejar, apertando os colares de ouro em seu pescoço com insegurança, 'Além do que, que história é essa? Eu deixo ninguém montar em mim...bem...isso não vem ao caso...', percebendo-se perdido, Leandro vira-se para o outro canto da mesa, 'Porra, Rennard, me dê uma força aqui! Você sabe que estou certo!'.

Rennard, que ainda estava bastante absorto em seu baixo elétrico, afinando e cuidando das cordas, se viu puxado para o meio da discussão. Plipka, a lagartixa, deitava serenamente em seu ombro, mais para lá do que para cá. Sorrindo de maneira esquiva, ele responde ao leão, 'Por mais que possa doer aos seus olhos, amigo, aqui não é o lugar de julgamentos. Estamos no Alto Bairro, bem longe das ruas centrais e bem longe das normas da mandrágora. Aqui, todas as cores se misturam no escuro. Sugiro que aceites e caias de cabeça nesse turvilhão, amigo'.

O leão abriu um sorriso constrangido e Sândalo, apontando para a cara dee, fala em voz alta, 'Ah, toma Leandro! Se temos a bênção do raposo, então temos a benção dos deuses', e, dirigindo-se para Rennard, grita bem jocosa, 'Agora vem cá lindo para eu te dar um beijo e apertar esse seu rabo'. O raposo ri, deitando o baixo elétrico sobre a mesa, 'Olha, se ficar me chamando assim, talvez eu até vá'. Aumentando mais a voz, Sândalo continua, 'Então vem, gostoso, para eu dar um trato em você. E tenho certeza que meu irmão também não vai recusar esse seu rabão!'. Alecrim, olhando sedutoramente para Rennard, balança afirmativamente, 'Minha irmãzinha está certa; afinal, hoje eu realmente estava afim de umas costas masculinas onde subir'. O raposo era só sorrisos, 'Bem, posso pensar no caso, se vocês prometerem ser gentis comigo'.

'Hipócrita', disse uma voz gélida e arranhada no canto mais afastado da mesa, tão afastado que os outros até quase tinham esquecido dele. Mesmo soando baixo, mesmo soando escondida, a voz se fez mais alta do que todas as risadas e brincadeiras triviais. Todos, até o leão e sua coroa, afundaram um pouco mais em seus assentos, paralisados e ansiosos. Envolto em fumaça, batendo as cinzas para fora do cigarro, os olhos do unicórnio faiscavam na escuridão e seu chifre – pontudo, longo e infinito – estava virado para o raposo, ameaçador...

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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Poema (8) - Deitando ao chão




Deitando ao chão 11 11 2014

Muitos deitam em camas
Rangentes, guinchantes, barulhentas
Já eu gosto da lucidez do chão
Com seu assoalho vasto e resistente textura
Porém, seu toque é frio, persistente
Faz-me sentir falta de teus braços
E dos portos e navios dos teus olhos

Vejo figura dançando entre as cortinas da janela
Enquanto a orla do tecido lambe o chão
Os dedos de minha mão sentem o aroma
E um fantasma te deita em minha sombra
Não precisas me oferecer tuas coxas
Mas aceito tuas pernas com carinho
Se aceitares a sinceridade de meus suspiros

Pois ao fim, é muito chão pra pouca carne
Deitados nesse mundo de frio estendido e solo
Só percebemos o limite de nossa pele
Quando envolvidos em outros
No escuro, no frio, a terra é como água
Cabelos ondas, corpos líquidos,

Talvez aceite um pouco das coxas...

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domingo, 9 de novembro de 2014

Animalia - O raposo e a Andorinha sob luzes azuis



Num apartamento de medidas discretas, uma música soava grave. Ela vinha de um aparelho de som modesto – um blues antigo, lento e quente. Sentado ao chão, o raposo de cores escorridas seguia o compasso da música com seu baixo elétrico apoiado em suas coxas. O braço do instrumento elevava-se na escuridão e os dedos escorriam pelas cordas grossas. Atrás, com as costas encostadas nas dele, a andorinha de penas arqueadas ouvia atentamente, suas emoções ondulando para dentro e para fora com cada nota tocada.

'Enna', perguntou de súbito o raposo, sem que seus dedos parassem de tocar, 'Como vai Alarico?'. A andorinha, ainda de olhos fechados, parcialmente em transe, piou, 'Como sempre: queria que eu voasse mais baixo e mais próxima dele'. Deixando a música soar, o raposo demorou um pouco antes de voltar com a fala, 'Pobre do Alarico, não acho que ele entenda a tua situação'. A andorinha dançava sentada no mesmo lugar, esfregando as costas nas do raposo. 'E como poderia ele entender o sabor do vento? Só acho estranho que, para um gato, ele seja tão...carente'.

'Acha que ele seria melhor como um cão?', riu o raposo, 'Talvez esteja sendo muito normativista, querida'. A andorinha estalou o bico, 'Rennard, não seja besta!', erguendo os braços na escuridão, tocou suavemente a mão do raposo que continuava dedilhando o baixo, 'Você sabe muito bem que os gatos não costumam ser tão grudentos assim'.

O toque da mão de Enna era leve como bolhas de sabão. Rennard sentiu um salto na base de sua coluna. 'Há de entender, querida, que mesmo gatos acabam perdidos em ciúmes quando vêem sua parceira no meio de tantos rabos e pernas'. A andorinha ouviu, sorriu para si mesma, e deitou a cabeça nos ombros de Rennard, deixando seus cabelos caírem sobre o peito dele, 'Está insinuando que ele acha que não possa me satisfazer?'.

'Não só isso, mas também provavelmente ache que você acabará encontrando “algo melhor” e então o terminará largando', o raposo fala lentamente, atentando para a reação da andorinha. Ela, consternada, balançou a cabeça, deixando sair pela boca, 'Gato idiota...'. O raposo, beijando a bochecha dela, diz: 'Não fique chateada, amiga. É normal que ele pense assim'.

Mas a andorinha tensionava os ombros, 'Eu sei disso, Rennard. Eu sei muito bem disso'. Ela continuava balançando a cabeça, seus cabelos como tentáculos sobre o corpo do raposo, 'Só pensei que, depois de tudo, ele me entenderia melhor. Já conversei com ele, já dancei com ele, já mostrei para ele como meu coração treme quando está sozinho no escuro. Pensei que seria o suficiente para fazê-lo entender. Contudo, percebo claramente isso que você diz: ele tem medo de me perder através da pernas. Pior ainda, o medo dele é de que algum macho me “monte de jeito” e me roube dele, pois quando eu faço amor com Plipka ou as outras meninas, ele adora ouvir. Ha!', a andorinha pausou um instante, como se acumulasse despeito, e disse novamente, 'Gato idiota!'.

O raposo deitou o baixo elétrico ao chão e virou-se para encarar a amiga. Seu pelo avermelhado com fios cinzas e prateados eram pintados de preto no escuro. Olhando longamente aos olhos claros da andorinha, com os dedos percorrendo seus cabelos, sorriu: 'Querida, não deixe queimar essa angústia em você'. Mas a andorinha não permitiu que o raposo falasse mais deitando um dedo nos lábios dele, 'Não, Rennard. Não precisa defendê-lo. Eu sei, eu entendo o lado dele. Sei que é comum. Sei que é “normal”. Eu só queria que ele entendesse o meu. Só queria que ele sorrisse com o modo como eu sou. Que deixasse os temores dele. Que acreditasse...que confiasse em mim', ela suspirou, 'Queria que ele me entendesse'.

Ainda com o dedo sobre os lábios do raposo, Enna levantou o rosto e olhou para as feições de Rennard. 'Eu adoro...', foi o que ela disse com uma voz perdida, enevoada. Seu dedo desceu dos lábios do raposo, alisando seu queixo, seu pescoço, 'Eu adoro o corpo'. A andorinha se aproximou, de joelhos. Pela luz azulada que saía do aparelho de som, sua silhueta ganhava traços fantasmagóricos, como se sua pele fosse feita de neon. A andorinha estava quase nua. Vestia somente uma camisola que terminava ao meio de sua barriga. Suas pernas finas tocavam o azulejo frio do chão, e sua cintura nua começava agora a roçar na barriga do raposo.

'Adoro o toque, adoro o som das peles, adoro os movimentos, e como cada animal, cada um deles, ama diferente', a andorinha fechou os olhos, como se fosse tomada por lembranças etéreas, 'Adoro a maneira como as hienas machos rastejam pelas minhas pernas, e como as fêmeas puxam meus cabelos para me fazerem gritar. Adoro como os cavalos me completam por dentro, e como as cavalas são tão acolhedoras. Adoro o latido dos cães e o miado dos gatos. Adoro as novidades que me trazem os ratos, e adoro a fala confusa dos pombos. Adoro como os cervos me fazem parte de seu território. Adoro o pedantismo violento dos leões. Adoro a travada que os crocodilos me forçam nas pernas. Adoro as línguas longas das cobras. Tudo, todos, adoro cada um, e cada um deles ama diferente – nenhum rato guincha da mesma forma quando eu lhe aperto o rabo'.

Com sua camisa de manga comprida e sua calça longa, o raposo ouviu serenamente as palavras lambidas da andorinha, a qual ainda estava de olhos fechados. Alisando sua cintura nua, diz, 'Compreendo como te sente, querida. Estar tão próximo do corpo de alguém é como estar próximo da sua alma, da essência', a mão dele correu pelas coxas dela, alisando seus joelhos, suas canelas, 'Quanto mais eu gosto de alguém, quanto mais uma pessoa me atraia o coração, mais vontade tenho de perder-me nela, de esquecer meu cheiro nos cabelos e o som de minha voz nos gemidos dela'. A andorinha piou, ainda de olhos fechados, com suas perninhas tremendo ao toque de Rennard. 'Mas há uma diferença entre nós, creio'.

Ainda arfando pelos toques, Enna abriu os olhos, 'E qual seria?'. Rennard tirou as mãos das coxas da andorinha e olhou-a com um carinho bastante travesso, 'Para ti, amiga, o sexo é a porta de entrada'. A andorinha deu uma risada bastante divertida, infantilmente doce e deitou os braços em cima dos ombros do raposo. 'E quando é que você vai deixar eu entar, amigo?'.

O coração dele passou uma batida e, por alguns segundos, ficou sem fala, perdido nos olhos da andorinha. Ela, sorrindo como se voasse, aproximou o rosto e beijou-lhe as orelhas, enquanto sussurrava, lentamente, 'E quando é que vai me deixar entrar, hum?'. O raposo ganiu, os olhos fechados, as mãos abaraçando as costas da andorinha, passando por debaixo de sua camisola, arranhando sua pele. A andorinha, com a voz molhada de sedução, repetiu pela terceira vez, 'E quando vai me deixar entrar, vai, me diz'. As mãos dela apertavam dominadoras a cintura dele, baixando sua calça. Rennard tremia, gania, gemia, mas juntou forças para dizer, também ao ouvido da amiga: 'Quando a lua estiver no céu!'.

E então se afastou, sorrindo bobo, olhando com imensa amabilidade para a andorinha. Esta, ajoelhada no chão frio, as mãos agora cruzadas atrás das costas, estava com seu corpo cintilando na luz azulada do quarto. Ela sorria e sorria, olhando curiosa e meiga para o amigo de longa data. Os dois se fitaram em silêncio, ainda respirando rápido de desejo, namorando um o outro à distância de alguns passos. O raposo tentou se acalmar um pouco, tocando o próprio peito, ainda com uma risada sem jeito estafada na cara, 'Desculpe se sou tão besta...'. A andorinha, com os seios de pé, agora ria, olhando cravada nos olhos do amigo. Ele ficou constrangido, e virou o olhar para o chão. Depois de alguns momentos de silêncio, a andorinha diz: 'Eu te amo, seu bobo'.

Rennard levanta o rosto e mostra a língua para a andorinha, em seguida se aproximando, deitando a cabeça nos seios dela e abraçando sua cintura nua, 'Também te amo, Enna'. A amiga afaga-lhe os cabelos e pontua, 'Tá certo então, espero até a lua estar no céu. Mas aí não terá desculpas para eu agarrar esse seu rabo lindo, entendeu amigo?'. O raposo respondeu com uma risadinha abafada nos seios dela. 'Só espero que isso tudo não seja medo de que, após te comer, você ache que eu vá te deixar também', diz a andorinha, besta.

O raposo solta um muxoxo de desaprovação, 'Não seja idiota amiga!'. Enna ri, beija o topo dos cabelos do amigo e se levanta, indo até a janela do quarto. A brisa fria da madrugada passou pela sua bunda pelada e ela reclamou: 'Ai caramba, tá frio!'. Vendo a amiga na janela, Rennard ri, 'Também, com essa bundona de fora, né miga?'. A andorinha nem se virou para encarar o raposo, mostrando o dedo para ele de costas. Depois de um tempo, diz, 'Olha só, os gatos e cães estão brigando de novo. Mas parece que a coisa será engraçada, pois tem uns três outros animais no meio da confusão'.

'Será que vai ser sério?', pergunta o raposo, novamente alcançando o baixo elétrico que havia deixado caído no chão. 'Sei lá', responde a andorinha, 'Mas acho que podemos tornar as coisas mais interessantes. Vamos Rennard, toque alguma coisa que os faça gemer!'. Com um sorriso sacana, o raposo responde, 'Isso será fácil, querida'.


E assim, o som de um baixo elétrico começou a penetrar na noite escura.

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