'O que rima com vermelho?', perguntou o jovite coelho, suas longas
pernas esticadas no chão. Ele escrevia num caderninho algumas linhas
de texto, parecendo ser o rascunho de um poema.
'Ora, coelho!', respondeu o cobra, enquanto passava os dedos entre a
bunda do coelho, sorrindo malvado. O pequeno deu um pinote,
virando-se sobressaltado para trás. Seus olhos avermelhados
encontraram os do cobra, sentidos. 'Não faça isso do nada, eu não
gosto'.
O cobra ignorou a zanga, levando os braços atrás da cabeça. Sua
língua bifurcada sibilou no ar, e, com uma atitude largada,
encostou-se na parede. Estavam os dois no terceiro andar da
universidade. Quase tudo era escuridão, com somente alguns pontos
sendo iluminados por postes de luz. O lugar inteiro parecia um mundo
fantasmagórico, deserto. Aqui e ali, alguns poucos bichos ainda
podiam ser vistos caminhando pela estradinhas em meio aos gramados,
com passos rápidos e decididos. Mas, em geral, todos já haviam
corrido para as ruas da Animalia, procurando diversão e liberdade. O
cobra soltou um muxoxo resmungado de desgosto: 'Por que diabos temos
que ficar aqui durante uma longa noite? Será que as aulas não
podiam haver terminado mais cedo?'.
'Você não tem aula, não é obrigado a ficar', respondeu o coelho,
enquanto afrouxava o short que fora enterrado em seu rabo (graças
aos dedos do cobra), em seguida voltando a escrever em seu
caderninho.
'Ah, e é assim que você responde à boa vontade dos amigos?', a voz
do cobra soou zombeteira, 'Eu venho para cá, super disposto, fico
aqui do seu lado esperando a droga do seu professor chegar, te
fazendo companhia, e é assim que você agradece?'. Sibilando, ele
esticou o braço, alisando as costas do coelho, escorrendo por ela.
'Bem, eu não pedi que viesse', o toque do colega fazia um arrepio
subir da base de sua coluna até o seu pescoço, 'E você sabia muito
bem que minha aula começa às 20. Portanto, não adianta ficar
reclamando. Se acha que está perdendo a sua longa noite aqui, então
pode ir'.
O cobra soltou uma risada alta que reverberou pelos corredores
escuros da faculdade. 'Quanta ferocidade para um coelho. Quem vê,
até pensa que esse show é de verdade'. O cobra aproximou-se,
alisando as pernas nuas do coelho com os pés descalsos, cruzando
perna em perna, serpenteando. 'Vamos lá, seja sincero: está
adorando que eu esteja aqui, passando minhas mãos nas suas costas e
meus pés nas tuas pernas. Então porque fica dizendo essas coisas,
por acaso realmente quer que eu vá?'.
E o cobra olhou nos olhos do coelho, novamente pintando em seu rosto
aquele sorriso malvado, quase desafiador. Os olhos vermelhos
profundos do coelho se perderam nos cristais escuros dos do cobra,
como que mermerizados.
'Se quer realmente que eu vá', continuou, 'Sabe que basta olhar nos
meus olhos, com sinceridade, e dizer claramente para eu ir embora'.
Os dois olhos continuavam a se fitar mutuamente, num delicioso jogo
de nuvens e desejo. 'Vamos, se está sendo tão difícil de aturar
minha presença, me mande ir embora'.
O coelho ficou em silêncio. O cobra espandiu o sorriso, vitorioso.
Desencostou-se da parede e, serpenteando, subiu nas costas do coelho
e deitou-se por cima dele. O pequeno soltou um suspiro gemente, que
quase tornou-se num grito quando sentiu a língua bifurcada do colega
em seu ouvido. 'Vamos', voltou a dizer, 'Diga para eu ir embora, se
eu sou tão terrível assim'.
Retirando forças do espírito para poder falar sem ser em gemidos, o
coelho disse: 'Não exatamente eu quero você longe, para ser
sincero. É só que...', e o pequeno fez uma pausa, sentindo a
serpente em suas costas, pesando sobre si, '...eu sei que se você
ficar aqui, eu não conseguirei chegar no horário da aula'.
O serpente abriu a boca, maligno. 'E quem precisa chegar no horário
da aula?', disse. E então, segurando nas longas e escorridas
orelhas do coelho, puxou-o para trás. O corpo inteiro do garoto
empinou, seguindo a condução do colega. Então, sentando-se, o
cobra puxou consigo o garoto coelho, fazendo-o sentar em seu colo.
Sempre seguindo os movimentos vigorosos, o coelho acomodou seu rabo
no colo do cobra, sentindo a serpente dura em sua cauda.
'Agora, mexe', ordenou o cobra com sua língua bifurcada ao pé do
ouvido do garoto. 'Mas e se nos virem?', perguntou, temeroso, o
coelho. O cobra puxou mais forte as orelhas dele, fazendo o menino
romper num gemido, 'Eu creio que não terá problemas que os
fantasmas vejam a gente se agarrando'.
E o coelho começou a rebolar no colo do cobra, no ritmo de seu
coração acelerado. Rebolava o quadril em círculos, em oitos, às
vezes descendo e subindo, às vezes ondulando a coluna. Estavam no
escuro, num canto sem luz do terraço da faculdade, onde o vento frio
da noite virava vapor em contato com a pele quente dos dois amantes.
E o coelho continuava rebolando, suas costas viradas para o colega,
suas pernas, nuas, roçando nas calças jeans do cobra.
'Isssso', sibilou o cobra, fechando os dedos mais fortes nas orelhas
do coelho e passando a língua em suas costas, 'Adoro como você
rebola, sabia?'. O coelho deu um sorrizinho, 'Creio que tinha essa
impressão, a considerar como você está duro em mim'.
'Precisamente!', e o cobra puxou os ombros do coelho com força,
fazendo-o afundar mais em seu colo, 'Essa maneira como mexe os
quadris, como contorce a coluna, não deixa por menos para nenhuma
outra cobra ou serpente. É tão fofo, tão sedutor, tão feminino'.
Subitamente, o coelho parou. Virando seu rostinho para trás,
encarou, com bastante curiosidade, o cobra. 'Feminino?', indagou,
'Por que feminino?'.
'Como assim?', o tom do cobra soou como se o coelho tivesse
perguntado porque colocar a mão no fogo era uma má ideia. 'É
bastante evidente que você é bem feminino, ora. Como vou explicar o
óbvio?'.
Mas o olhar do coelho permaneceu impassível e mistificado, como se
as palavras proferidas pelo colega fossem ditas em alguma língua
desconhecida. 'Eu só não entendo por que “feminino”. O que há
de feminino em meu rebolado ?'.
O cobra se perguntava se o coelho estava sendo sarcástico ou não
com aquelas perguntas. 'Bem, o seu jeito de mexer os quadris, de
rodá-los, de sambá-los para lá e para cá. Na verdade, nem só no
rebolado, mas também todo você é bem feminino. Sua voz é suave,
você é delicado, sua pele é macia, suas orelhas lisas e boas de
pegar. Até seu cheiro é leve e puro. Você é todo menina', riu o
cobra. Mas o coelho continuava a fitá-lo, sério, a boca num
delineado tenso. 'O que foi? Por acaso te incomoda que eu fale
assim?'.
'Não, não é bem isso', ponderou o coelho, com um pouco de receio
na voz. 'Eu só não entendo. Ser doce, suave, delicado, sambante...é
ser feminino? Não pode ser também masculino?'.
'Ah, cara, mas que cu!', e o cobra estalou a língua com desgosto,
'Será mesmo que você vai puxar uma conversa filosófica agora, é?
Quer realmente que eu comece a explicar que aquilo que eu chamo de
feminino é referente a toda construção de discursos feita ao longo
da nossa sociedade e das regras de conduta da mandragora, as quais
servem como base de todo o sistema de nomenclatura e significação
de nossos ambientes sociais e blá-blá-blá. Sério mesmo que você
quer falar disso? Porque eu sou uma cobra e, pelos deuses, se você
realmente quiser, eu irei explicar até as suas orelhas caírem!'.
O tom do cobra foi de certa piada e desdém, mas o rosto do coelho
permaneceu com distinta seriedade. 'Não precisa exaltar-se,
querido', disse, alisando os lábios do cobra, 'Entendo que existem
certos gestos que são nomeados como femininos, e outros como
masculinos. Eu só queria saber se você pensava assim – se eu sou
feminino, se eu sou menina'.
'Ora, acho que sim', o cobra ficou desconcertado com a situação, e
logo devolveu a pergunta ao coelho. 'E por acaso você não acha
feminino?'
'Eu não sei, nunca pensei nisso', e o coelho espreguisou-se,
calmamente. 'Esses nomes todos – feminino, masculino, afeminado,
menina, menino – são só enfeites, acho. Eu diria que... eu sou
apenas eu'.
E, do nada, uma voz vinda da escuridão dos corredores fantasmas
pergou de surpresa o coelho e o cobra. 'Hei!', disse a voz num timbre
médio-grave, 'O professor avisou que não vem hoje. Parece que ele
resolveu ir aproveitar a longa noite'.
Os dois precisaram de um momento para se acalmarem do susto. Por um
momento, imaginaram ter sido pegos – o que poderia causar um enorme
problema. Especialmente se fosse um dos professores. Pior ainda se
fosse um leão que os visse. E imagina então se fosse um urso, seria
um inferno! Mas, por sorte, era um lobo que se aproximava.
'Ah, obrigado por avisar, colega', sorriu agradecidamente o coelho,
'Nem sabia que você era da mesma turma que eu'.
'E nem teria como você saber. Acho que ainda nem fui para uma aula
dele sequer. E, para meu azar, logo quando resolvo vir, o professor
não vem'. O lobo vestia roupas largas e esvoaçantes – como
costumam fazer os lobos – e fez uma reverencia aos dois quando
chegou perto. 'Bem, não há mais razão para ficar aqui, então acho
que seguirei meu caminho. Estou pensando em ir ao Lupercal, ver se
encontro com os outros da alcateia'. O lobo fez uma pausa e olhou
demoradamente nos olhos vermelhos do coelho, deixando escapar um
sorriso discreto. 'Caso queiram, podem vir comigo para o Lupercal'.
'Hum', resmungou o cobra, 'Não sei, nunca fui para esse lugar. Não
costumo conhecer muitos...', e fez uma pausa, olhando um tanto
irritado para o homem, '...lobos'. Mas o coelho em seu colo segura em
sua mão e sorriu, 'Querido, não precisa ficar assim. Talvez até
seja divertido irmos para lá'.
O cobra continuou indeciso e desconfiado. O lobo, dando de ombros,
virou-se, 'Bem, eu ainda vou ficar por aqui por mais uns vinte
minutos. Se quiserem ir, me encontrem lá embaixo no térreo'. Depois
de falar, deixou os outros dois a sós.
Assim que o lobo saiu da vista, o cobra, um tanto afetado, perguntou:
'Você realmente está pensando em ir para o Lupercal? É lá que
fica a toca dos lobos, caramba!'. O coelho, vendo a visível
preocupação do colega, deu uma risada divertida.
'Querido, relaxe', falou enquanto alisava as escamas do companheiro,
'Até parece que eu sou a serpente predadora e você é o coelho
assustado! Tenha calma, o Lupercal é ótimo. Já fui lá inúmeras
vezes. E tenha certeza de que pode confiar nos lobos, meu bem'.
O cobra olhou demoradamente para o coelho, espantado com a segurança
com que falava dos lobos. Pasmo, colocando as mãos nos quadris, ele
pergunta: 'Cara, me diz, qual é dessa entre os coelhos e os lobos?
Como é que vocês sempre parecem estar um na sombra do outro?'.
E, novamente, o coelho soltou uma divertidíssima risada. 'Veja bem,
isso é porque os lobos são os guardiões da Lua. São os únicos
que podem ter seu canto ouvido por ela'.
'Sim, eu sei disso!', a voz do cobra soou insistentemente incomodada,
'Mas o que isso tem a ver com os coelhos?'
'Ora, querido', e o coelho beijou os lábios do cobra, 'Por acaso não
sabe que todos os coelhos vêm da lua'.
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