Numa
pocilga, luzes foscas e fugidas tremem em placas de um neon velho e
decrépito, as cores dos sinais elétricos zumbindo um
grito de agonia como se espasmassem à beira da morte. Por todo
lado, mais ratos, insetos e vermes do que os olhos possam
contabilizar (ou canibalizar), e nem todos andando rente ao chão. A maioria
rastejava, joelhos despedaçados levando consigo um rastro de
sangue roto e baço. Outra maioria caminhava sobre pernas, pés
e patas, rindo, apontando, em ternos agêneros de acrílico
estéril. Buzinas não permitiam o silêncio,
servindo como a ponta aguda do acorde da desfeita e malefício
daquele lugar. Gritos acompanhavam desritmados, juntamente com
choros, barulhos de sucção e o arrastar de peles. Na
base desse acorde, servindo de fundo grave e dando ritmo à
batida, motores de uma pneuma doente, trac-trac-trac, estalando como
explosões inaudíveis mas cujas notas graves eram de uma
possância tamanha que podiam impor seus rítmos aos
corações de todos os ouvintes e quebrar-lhes os peitos
e desfiar-lhes as carnes, os músculos e tendões.
Trac-trac-trac, batia gongórico, um relógio de
pandemônio, os ponteiros derretendo nas pontas, os números
caindo do visor, trac-trac-trac.
'Sabia
que te encontraria aqui,' falou uma figura longa e fina, um pássaro
com pneumonia, 'Mas no fundo do fundo, não queria'. Tinha
ombros levantados e largos, um manto feito de inúmeras
camisetas remendadas, um rosto pálido pelas luzes que caíam
em seu rosto pelo neon velho de doenças hospitalares. Olhava
como uma sombra muito extensa, seus olhos deitados sobre um dos
vermes naquele antro. As buzinas soavam ao fundo, e os motores graves
continuam pulsando a fumaça para o sistema, trac-trac-trac.
'Sabia, e como eu sabia', e com a ponta do pé direito,
trancado numa botina de solas grossas e enlameadas – pela sujeira
úmida que fluía por todo aquele beco fundo, berço
imundo –, tocou a criatura acocorada no chão que abraçava
as pernas como uma semente, cabeça perdida entre os joelhos,
cabelos longos e tentaculares como veias escuras sobre as pernas
nuas, os pés nus, a pele crua, 'Mas não queria'.
Chutou a
criatura. Nenhuma resposta. 'Aquietaste finalmente ao útero
estéril em que te encerras?'. Novo chute, mais forte, nas
mãos, nos cabelos, a bota suja mais suja ficava ao
encontrar-se com os cabelos puídos do verme, do rato. O
pássaro esqueletal sibilou, o ar passando através de
seu peito, escapando agudo pelas frestas das costelas. Sem
meios-termos, com uma voz desafetada, um tanto distante e meio
desinteressada, disse, 'Já te divertiste o suficiente.
Levanta'.
A figura
catatônica tremeu. Um tique nervoso, o contra-tempo da batida
de um coração, como se uma corrente de cinco mil
amperes alternados corresse através de suas tripas.
Lentamente, cada junta rangendo, ranhento, ergueu o ninho de arame de
fios emaranhados da sua cabeça, deixando surgir seu rosto
antes embainhado na bacia dos joelhos. Despontando do rosto
terminalmente flácido de carnes soltas, olhos empoçados
fitaram (em desafio, chacota, jocosidade?) a silhueta acorcovada do
pássaro de ossos. Nenhuma resposta. Silêncio. Uma linha
torta fincou um sorriso feio em seu rosto. 'Levanta', diz o pássaro.
'Levanta?',
diz numa irônica pergunta o verme com sua não voz de
unhas arranhantes. 'Sim', o pássaro. O verme, 'Não
sinto o meu coração'. O pássaro, 'Se não
sente, não precisa dele'. O verme funga e refunga, sardônico,
'Perdeu a noção inteira de toda sanidade, de tudo que é
sanitário, afastou-se de toda medicina. Não mais
distingue vida de morte?'. Um carro se choca contra um orfanato ao
longe, crianças carbonizadas com seus ossos em chamas gritam e
mordem as chapas de metal do veículo. Um indivíduo
roliço tenta apagar o fogo com vinho. Uma apocrifia de
barulhos horrendos.
'A
distinção entre escuro e claro é apenas uma
ilusão – ambos dormem na mesma cama', responde finalmente o
pássaro, depois que sua voz pôde superar os gritos ao
fundo. O verme ri, arqueando os braços como se fosse um boneco
fantoche,
'Não
há mais notas, a música agora travou num revertério
– e eu sou o refluxo da azia de tudo', e o verme estendeu os
braços, como se envolvesse todo o ambiente mórbido em
que emplastrava seu corpo, colado contra a parede, o chão, a
rua, o chorume, 'Tudo, sou o esgoto de tudo'. O pássaro,
impassível, 'Se assim é a música que te encanta,
então canta. És o que fores'. Fez uma pausa e, frio,
continuou, 'Levanta'.
O verme,
seus olhos em piscinas de águas paradas, não se moveu,
'Tolo, que me veio até aqui, quais ideias foram pintadas na
tua mente? Com qual grandeza imaginaste minha estatura, o
enquadramento de minha forma, para encontrar somente esta ferradura,
rasura, feia e urdida criatura?'. E abriu mais os braços,
desfraldando mundos de carnes embotadas, costuradas, e amargas 'Não
tenho mais asas, não tenho mais pluma ou pena, não
tenho mais vôo'. O pássaro noturno de camisas remendadas
chutou as costas do verme, fazendo algo tombar-lhe das espáduas.
Olhou, com olhos de agulha, e sorriu, 'Ainda tens uma asa'.
'Uma asa,
que bem faz uma asa? Uma nota? Um nome? Um sonho? Um pulso?', falou
descrédulo e desditoso o verme. Impassível, o pássaro,
'Ainda tens uma asa'. O verme soltou um ínfimo de esgar, seu
rosto retornando para a baía de seus joelhos, 'Uma asa, que
adianta? É nada, uma asa é nada', com o rosto perdido
na escuridão, 'Sou o remix de um desespero'.
O pássaro
ergueu o punho – uma corrente fosca transpareceu sem brilho nas luzes doentias
de neon. 'Existir é um remix eterno. Todo ponto é um
recomeço, todo fim um recontexto'. A corrente grossa ia de si
para o pulso do verme, invisível mas, ainda sim, presente,
existente. 'A única constância que poderíamos
constar é a da mudança – mesmo a morte depende de um
referencial e, como certeza, não é a das melhores'. Ao
longe, uma guitarra distorcida parecia ganhar fôlego, rasgando
através das buzinas dos carros. Um baixo elétrico
pisava acima do motor, trac-trac, do motor relógio que vazia a
fumaça rodar no sistema, trac-ck. O verme reergueu seu rosto
das águas de seus joelhos, olhos como um cemitério num
manguezal.
O pássaro
fitava o verme com a seriedade de um disco de vinil. 'Dezesseis vezes
vim a ti, e agora venho mais outra vez, procurando que respondas, tua
resposta estando agora no limite de dezessete'. Os olhos se chocavam
como mercúrio sólido, as correntes dos dois tilintavam.
O mundo segurou a respiração, 'Tua resposta?'.
O verme,
um sorriso. Um acorde distorcido de guitarra assomou-se mais alto que
todo o desatino. O chão tremeu, os ventos uivaram como um
alcatéia lunar. O pássaro noturno alcançou um
fósforo já usado, já gasto, inútil e o
colocou no buraco da fechadura das correntes, das algemas.
Imediatamente, o ferro acendeu em chamas, e as chamas dançaram
até o verme, tomando-o por completo, cada milímetro de
seu vazio. E logo era somente pele carburada, osso acarvoado e, em
menos do que um átimo, cinzas. Mas o fogo, infinito, o fogo
não termina. Destruiu tanto quanto recriou. Primeiro a gosma,
depois os pés ossudos, depois o músculo, depois a voz.
Uma pomba de uma asa só, piando mais alto que a lua, em fogo,
flama. Tudo em chamas, em chamas, chamas.
Fênix.