segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Poema (5) - Imaculabilidade de um balão se expandindo



Imaculabilidade de um balão se expandindo (22 07 2014)

I
O que me mancha o corpo é esta leveza
Inominabilíssima del ar
Nas cores cristalinas da beleza
Nas ondas categóricas do mar

II
Tão leve no meu peito é esta pureza
Indevassabilíssima do lar
Nas flores pequeninas da dureza
Nas sondas alegóricas do amar

III
Pra cima, para longe longa o espectro
D'uma sombra gigante e esfomeada
Mas longa muito mais meu ente electro
Liquifluido e tempesto feito gaio
Pirilampo de luz na madrugada

Riscando a escuridão com pés de raio

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Animalia (3) - A aposta do Corvo



A coelha recuou um passo. 'O que fazemos?', perguntou num tom perdido, enquanto observava a cadela de quadril largo olhando ávida para si. 'Tenho medo desta cadela, e pavor de seus companheiros que me olham como se já me estivessem a mastigar. Talvez devêssemos procurar outro caminho, outra saída para o Lupercal pois, em verdade, quem pode comprovar que estes animais não nos estejam mentindo?'.

A cadela de quadril largo não gostou do comentário, respondendo num rosnado apicado, 'Em Animália, não há mentiras quando o assunto se trata das linhas da pele e dos ângulos dos gemidos'. A cadela riu-se enquanto à sua volta se reuniam os cães de sua matilha.

O corvo Kish de penas raiadas estalou a língua contra o bico, desdenhoso. 'Como não há mentiras? As maiores mentiras são contadas exatamente por causa da pele e do suor, do desejo de ser caçador e presa. De fato, eu até poderia acreditar estarem mentindo, que tudo isso não passa de uma cilada para nos fazer cair em suas presas e garras,' e o corvo deu uma pausa, ridente, 'Mas sei que gatos e, especialmente, cães não poderiam mentir sobre o Lupercal. O Lupercal onde os lobos habitam. O Lupercal onde as lobas caminham sobre as pedras frias e os lobos uivam acima das guitarras mais agudas. Sei que jamais ousariam mentir assim, pois mentir sobre lobos é convidar o infortúnio para jantar – e, todos sabem, o jantar é muito mais íntimo que o almoço'.

A cadela soluçou uma gargalhada, levando a patinha manhosa à boca de dentes sedentos, 'Pois, está correto, corvo de penas raiadas. Não mentimos sobre o Lupercal, pois ter lobos irados em nossos calcanhares é a última coisa que desejamos. Todos os cães respeitam aqueles que os ensinaram a latir'.

'Quanta doçura, quanta fofura, quanta candura rosada!', disse a gata malhada de branco e marrom, abraçando a cadela de quadril largo pela cintura. 'Quem diria a mais teimosa das cadelas de rua ser tão respeitosa aos seus mais velhos?', e a gata afirmou as patas sobre os seios da cadela, 'Ou será apenas medrosa? Pois afinal, todos sabem muito bem do dito: Todos os cães vão para o céu, mas os lobos vão para onde quiserem'.

Um choque subiu da base da espinha até o topo do pescoço da cadela de quadril largo pelo toque da gata branca e marrom. Mas resistiu. Segurou a vontade que teve de subir sobre a gata e rasgar-lhe a pele da camisa. Ao invés disso, desvencilhou-se do toque dela e virou-se para todos. Com o queixo levantado e a garganta à mostra, falou: 'Não importa os temores dos cães pelos lobos, não importa as mentiras e verdades contadas sob a proteção das sombras. O que importa é o agora, o presente, a noite, a madrugada, o momento entre o suspiro e o gemido'. E ela abriu os braços, como se tentasse tomar nas patas a atenção de todos. 'Todos que para a Animália se voltam, são caçadores e caçados, predadores e presas. E vocês três, deslocados e perdidos na noite, não serão exceção à regra. Também terão de dançar no ritmo do corpo, acompanhar a pulsar do coração dos parceiros. Se quiserem alcançar o Lupercal, terão de alcançá-lo através de nós, por entre nós...por dentro de nós'.

Conforme a cadela gritava suas verdades, olhos furtivos cintilavam nas janelas dos prédios, lobrigando a cena, observando tudo usando o canto dos olhos. Viam com curiosidade, como quem vê algo que não deveria, algo proibido; mas cuja a própria proibição tornava a ocasião irresistivelmente tentadora. De algum lugar, talvez de uma das inúmeras janelas que pontilhavam os paredões de prédios obscurecidos pela noite, um som de notas graves preencheu o silêncio. Fazia uma música lenta e cadenciada, soturna e malemolente. Um blues antigo que faz os quadris descerem dois degraus abaixo dos joelhos. Comovidos pelo som, gatos e cães pulsaram no ritmo da música.

A coelha Natasha de pernas desnudas olhou temerosa para os colegas. O cervo Bren de galhadas escuras mantinha-se altivo em sua camisa de mangas longas e sua calça jeans porfiante. O corvo Kish de penas raiadas estava em silêncio, apesar de sustentar um risado nos lábios. Natasha pensava em desistir, voltar para sua toca até que o sol nascesse novamente e os uivos noturnos da Animália não oprimissem seu coraçãosinho. Mas quando ameaçou virar de costas, o corvo pousou a asa em seu ombro, sorrindo com genuína

O corvo travou olhos com a cadela de quadril largo e, sem titubeio, foi andando destemido e reto na direção dela. A cadela, curiosa com tamanha ousadia, permaneceu desafetada, uma mão curvada sobre a cintura. Da escuridão, um cão cruzou seu caminho, mostrando-lhe os dentes e peitoral, mas o corvo nem desviou os olhos de seu objetivo. Então um gato e uma gata passaram por suas pernas, mas o corvo se não demoveu. Manteve os olhos fixos e vidrados na cadela, todas as outras distrações não o conseguiam afetar. Cada passo dado firmando-se forte nos paralelepípedos incertos da rua, seguindo o ritmo do baixista invisível que tocava a melodia soturna vinda de trás das janelas dos enormes prédios.

Logo se encontrava o corvo no coração dos gatos e cães, face a face com a cadela de quadris largos. A gata malhada de marrom e branco balançava a cauda para lá e para cá, deleitosa e desamuada com a situação. 'Não imaginei ver nessa noite um corvo com tamanha prepotência', disse a cadela quebrando o silêncio tenso dos olhares que se encontravam. O corvo deu ombros, 'Fala como se o que eu faço fosse algo de extraordinário'. A cadela trinou a voz com desfaçatez, 'E você fala como se fosse algo pouco aproximar-se de gatos e cães de rua assim, sem titubeios ou temores'.

'Sempre fui defensor da ideia de que, para se temer e titubear algo, deve-se haver razões para tanto', falou o corvo, dando uma olhadinha para a esquerda, para a direita e, com extrema espontaneidade, adicionando, 'E eu não entendo qual perigo haveria para mim aqui, agora'. Os cães ladraram ultrajados, os gatos eriçaram até os pelos dos calcanhares. A gata malhada segurou um risinho e, divertindo-se, atentou para a cadela. Esta então estava quase bufando de raiva. 'Como ousa? Não vê perigo algum aqui? Está rodeado por todo canto daqueles que te querem devorar pena e pele! E ainda vem falando assim, tão despojado como se nada fôssemos? Ora, ora! Devíamos todos cari sobre ti, corvo, e provar dessa tua pele escura até torná-la lívida pela falta de ar, com abraços, apertos, mordidas e beijos'. O corvo deu novamente ombros, 'Meu gosto é amargo para os desafeiçoados, meu amar é todo espetado por causa de minhas penas. Se me morderem sem o devido cuidado, terão para sempre o paladar tornado azedo'.

'Já tive corvos antes entre minhas pernas, entre minhas coxas e canelas', riu a cadela, 'Não será o primeiro, nem mesmo o último. Logo, não temo seu gosto nem me assusto com sua pelagem escura'. O corvo abriu bem a arcada de suas asas, 'Pois devia. Estas minhas penas mais escuras que a escuridão da lua podem te fazer perder o ar com um único beijo'. A cadela retorquiu, 'Promessas vazias, promessas tolas. Não quero um beijo teu somente, corvo. Quero obrigar você a te empoleirar sobre meus ombros fortes, e obrigar-te a fechar as asas em meu colo largo. Quero seu suor em meu pescoço e seu crocitar em meus ouvidos'. Conforme ela falava, sua voz ganhava timbres sedutores, ela se aproximava, suas mãos agarravam os braços do corvo, apertavam-lhes. Os cães da matilha sorriam e uivavam, circundando os dois que dançavam naquela escuridão no começo da madrugada.

O corvo permaneceu quase inabalado, olhando ainda com extremo auto-controle os olhos escuros da cadela. 'Tem medo de minha proposta? Medo de que meu beijo mostre-se mais do que pode aguentar?', disse num tom de desafio. A cadela, que já estava com as coxas grossas entre as pernas finas do corvo, pareceu curiosa. E então, olhando altiva sobre o corvo, riu-lhe, 'Bahssina nada teme'. E, colocando as mãos na nuca do corvo, ficando os dedos no pescoço dele, disse, 'Vamos, corvo, me beija'.


Sentindo a pegada esmagadora da cadela, o corvo quase desabou sobre as pernas. Mesmo assim, segurou-se, o bafo quente da cadela cheirando acre e doce em seu bico. 'Beijo, sob uma condição. Se meu beijo vencer-te por completo, terei eu e meu grupo passagem livre'. A cadela vincou o rosto de incredulidade, puxando com força o corvo pelos cabelos, encostando a testa dela na dele, 'Uma presa indefesa não tem direito a fazer qualquer exigência, meu bem'. O corvo deixou um sorriso agudo feito agulha despontar no rosto, 'E quem disse que estou indefeso?'. E subiu as mãos pelas coxas da cadela, a apertando. A cadela tremulou um tantinho, mas manteve a postura alta e, rindo alto, disse, 'Aceito sua condição, corvo raiado. Agora, beija!'.

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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Animalia (2) - O corvo, o cervo e a coelha


(2)

O cervo ia à frente do grupo, sua galhada de cabelos ondulando aos sabores do vento. Atrás vinha a coelha, com passos curtos e rápidos. E no fim da fila, vinha o corvo em silêncio. A madrugada se aproximava, e eles ainda nem começaram a se divertir.

'Bren', perguntou a coelhinha cortando o silêncio, 'Para onde vamos mesmo?', perguntou a coelha com uma voz fina e pequetita. 'Para o Lupercal, Natasha', respondeu o cervo.

'No Lupercal? Mas é onde ficam os lobos, não?', comentou Natasha, sua voz falhando.

'Na verdade, os lobos costumam ficar pelos Lupanares', pontuou o corvo.

'É, mas os dois lugares são bastante próximos um do outro!', argumentou a coelha.

'Pois é', o cervo riu, 'E eu estava mesmo afim de cruzar caminho com uma loba. Quem sabe eu tenha sorte hoje?'

Mas a coelha Natasha não gostou muito daquela ideia. Encontrar-se com lobos parecia ser algo assustador. Na verdade, toda essa caminhada pelas ruas da Animalia era uma ideia quase que revulsiva para ela. Mesmo assim, cá estava ela, pronta para caçar. Usava uma sainha bem curta e acetinada, com estilo agressivo e pontas ousadas. A saia deixava à mostra grande parte de suas longas e bem talhadas pernas. Porém, toda essa aparência de marra e atitude ficava só como faixada, pois qualquer um podia ver a timidez transbordando naquela coelhinha. Ela mantinha os ombros arqueados para baixo, formando uma elipse murcha, e toda hora apertava os dedos da mão esquerda com insegurança. Seus olhinhos rosados andavam de um lado para o outro, como o medo infantil de que estivesse fazendo algo errado, feito comer a sobremesa antes da refeição ou ficar acordada até o horário indevido. Assim, vestia aquela saia curta como um escudo, um reforço para empoderá-la com um pouco mais de atitude e determinação. Com as coxas de fora, pisava forte, como se com tais pisadelas pudesse esmagar sua timidez e mostrar-se completamente forte e cheia de si. O resultado final era como uma caricatura grosseira e cômica, com Natasha samborilando para lá e para cá nos paralelepípedos disformes das ruas escuras.

Na rua ao lado deles, o bando de cães e gatos dançava no escuro, todos completamente absortos em seus movimentos. No centro, a cadela e a gata se deixavam perder uma nos cabelos da outra, suas formas se dissolvendo no escuro. 'Já é a terceira vez que vejo esse grupo de cães e gatos se agarrando', riu-se o corvo, apontando com o bico o bando de animais a se tocar na rua à frente'.

'Antes de reclamar, bem que você podia fazer alguma coisa para ajudar, não é Kish?', falou o cervo Bren. 'Por que não abre essas asas e voa um pouco para dizer onde nós estamos?'.

'Nenhuma asa voa mais alto que a noite em Animália', riu o corvo, 'Se eu alçar voo, me perderei para além de qualquer retorno. Porém, creio que posso ser de um outro auxílio', e virando-se para o grupo de cães e gatos, grasnou, 'Senhoritos e senhoritas, será que poderiam nos ajudar?'.

Os cães e gatos pararam subitamente o que faziam e fitaram, um tanto perplexos, o trio de animais à frente deles. Os cães repuxaram os cantos das bocas e mostraram os dentes, desgostosos por terem tido o lazer deles perturbado de forma tão deselegante. Já os gatos, em contrapartida, estavam curiosos, arriscando um sorriso ou dois. Na verdade, quem mesmo respondeu a Kish foi a gata no centro da roda, depois que conseguiu libertar sua língua dos beijos da cadela que a agarrava.

'Há muitas ajudas que podemos dar', a gata sorriu. Vestia uma camisa bastante larga que quase lhe servia de vestido, indo logo acima de seus joelhos. A gola larga deixava à mostra a argola do sutiã preto que despontava bem no escuro, visto que ela estava diretamente abaixo de um poste de luz. Sua pelagem era malhada de branco e marrom. 'Mas eu me pergunto que tipo de ajuda três estranhos assim poderiam estar procurando à essas horas, logo na entrada das portas da madrugada?'.

'Ah, estamos procurando o caminho para o Lupercal', falou despretensioso o Kish. 'Não queremos atrapalhar a diversão de vocês mais do que já atrapalhamos, portanto só nos diga se nos poderia apontar o caminho que nós logo seguiremos viagem'.

Os olhos elípticos da gata faiscaram. 'Claro que podemos dizer para onde os três viajantes devam seguir – quem melhor que gatos e cães de rua para falar a linguagem das portas e das janelas, dos becos e das vielas?'. E então, libidinosamente, a gata escorregou os dedos por seu próprio pescoço e desceu até a altura de sua barriga. 'Mas, claro, toda informação tem um preço que deve ser pago na medida da pele'.

Do outro canto da rua, Natasha engoliu em seco e comprimiu com força os dedinhos de sua mão. Um cão olhava fixamente as suas canelas torneadas, enquanto que um gato não conseguia desviar os olhos de sua cintura fina. 'Eu não gosto disso', falou em tom baixinho, querendo só que seus amigos ouvissem. Mas os ouvidos sensíveis dos gatos conseguiram captar o tremer de sua voz, e todos miaram.

'Por favor, não precisam se incomodar para tanto. Iremos ser apenas um trio de desengonçados. Afinal, que podem fazer um cervo, uma coelha e um corvo para um grupo de cães e gatos? Não queremos criar problema', Kish tentou novamente contornar a situação. 'Apenas nos digam para onde devemos seguir que iremos alegremente'.

'Mas queridos, tomaram a situação de forma avessa, seguraram a cauda pela cabeça', riu a gata, dominante. Com o pulso desmunhecando femininamente, continuou, 'Adoramos desengonçados entre nossas patas, vacilando, suspirando em ritmos tortos, com as cinturas remexendo sem jeito, fofas, inocentes, ingênuas. Gostamos de nos enroscar pelas pernas estrangeiras e fazê-las dobrar pelo nosso jeito, pela nossa marra, pelas nossas garras. Das sete mil maneiras de se fazer um animal gemer, um gato conhece sete mil e uma'. Conforme a gata falava, os outros gatos se espreguiçavam e alongavam com movimentos elásticos e sensuais, olhando atravessados o trio do outro lado da rua.

Aproveitando que a gata tinha mudado o foco de sua atenção, a cadela que antes a beijava, tomou a gata pela cintura e mordeu-lhe forte o pescoço, fazendo-a miar altíssimo, quase que caindo num desmaio. 'Não faz diferença conhecer sete mil ou sete maneiras, basta saber apenas uma bem', riu a cadela, segurando o corpo desfalecente da gata que tremia por causa das mordidas. Depois, olhando para os três, ladrou: 'E vocês três desfalcados, tão irremediavelmente perdidos nessa noite que só acaba de começar. Disseram que seguirão o caminho para onde apontarmos, não é?', a cadela abriu sua bocarra num sorriso malvado. 'Pois bem, o Lupercal fica para lá'. E a cadela apontou para um cruzamento escuro, quase que escondido ao fundo urbano. Contudo, para se chegar até lá, era preciso atravessar o grupo de cães e gatos de rua.


Mil olhinhos brilharam no escuro, desejosos, ansiosos. Soltando a gata de seus braços, a cadela caminhou lentamente em direção ao trio, dizendo. 'Como podem ver, amigos, terão de dançar por nós para poderem ir ao seu destino. Portanto, se apressem e se entreguem às presas dos cães e às garras dos gatos. Faz tempo que não provo o beijo de um cervo e o cheiro de um corvo. E, para ser sincera, um pé de coelho não faria mal também'.


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As ruas são cinzas (1)



O dia veio nublado. Ontem estava sol, é verdade. Mas não era um indicador de alguma estação do ano. Apenas tinha feito sol, e hoje está nublado. Através das revoluções dos climas e dos dias e dos anos, é possível calcular precisamente até os fios de cabelos da primavera. É emocionante como pode-se dar nome para cada fase do inverno e para cada alteração do verão ao outono. Mas o dia estar nublado não implica em grandes planos, ou grandes tramas. Apenas em nuvens no céu. E nem são tantas a ponto de o céu ficar escuro. Assim, não parece que vai chover. As nuvens estão estáticas e claras. Não venta nem troveja. O sol que atravessa o teto de nuvens é quase abafado, mas não chega a tanto. A pessoa na rádio aponta que o dia permanecerá assim, até pela tarde toda. Até lá, haverá mais movimento na rua. Por hora, está tudo deserto. Um barulho chicoteia entre os obeliscos de prédios enormes – aquele barulho indescritível do vazio de uma grande cidade, parecido com um soco de vento no fundo do ouvido. É um som atmosférico, pacato, vagabundo. Se não prestar atenção, nem o percebe, acaba se mesclando nas ondas eletromagnéticas do seu cérebro. Como o som da chuva suave, molhada. Mas hoje não vai chover.

Um carro desponta solitário, correndo para dentro do labirinto de concreto da cidade. Sua trilha sonora ainda fica algum tempo suspensa no ar, mas logo se perde no silêncio. Dentro dele, um homem – de terno – ia para alguma firma. A firma teria um nome, mas todos os nomes de firmas são irrelevantes. Nomes de firmas só servem para seduzir clientes pois, para a cidade, só interessa o número dela. É pelo número que se paga as taxas e os impostos os quais, por sua vez, também são apenas números. Mas a firma desse homem de terno tem um nome, tenho certeza, mas não consigo acertá-lo. Poderíamos usar como seu nome algo simples, como Firma X. O bom desse nome é que o X lembra números – números desconhecidos. E o bom dos números é que eles são quase totalmente impessoais. Pode ser que estimemos ainda alguns números mais do que outros. O um sempre está atrelado à ideia de começo, ou de primeiro colocado. O dois vem sempre com o gosto amargo da derrota, ou a promessa ilusória de uma companhia. O sete nos faz relembrar de coisas religiosas e profanas. O dez nos lembra duas mãos. Enfim, há números que são dotados de bastante personalidade. Tanta, inclusive, que praticamente nem mais são números. Enquanto isso, muitas pessoas só conseguem ser números.

Na cidade, todas as pessoas são números. E todas são números vazios. Como 40392934. Ou 934822345. Números emparelhados no ofício do despropósito. Se você se esforçar, encontrará alguma razão oculta nesses números, sim. Verá alusões a grandes imperadores, grandes vitórias, terríveis guerras, sim. Mas só se é possível chegar a tais conclusões depois de procurar muito. A procura se torna um fim em si mesmo e, de tanto procurar, você encontra qualquer coisa que queira. Inclusive personalidade para números. Na cidade grande, todas as pessoas são números sem personalidade. Na firma X trabalham muitos números. O homem de terno é um número também, mas ele acredita não ser. Acredita que seu terno pinta-o de alguma coisa. Mas, no final, apenas adiciona mais um número a ele. E todos os outros colegas o observam, com olhares meio-abertos, cansados, turvos, fracos como o mormaço de um dia nublado. Eles queriam aquele terno. Não sabem porque queriam, mas queriam. Normal.

O homem de terno não tira o terno para trabalhar, mesmo em sua sala, mesmo sozinho. Na parede da sala quase vazia, há um quadro em branco. Nele há texto, coisas escritas, parecem importantes. Mas só parecem. No final, todas aquelas letras são como números. Não têm personalidade. Se resumem a uma conta de soma, adicionando mais números ao homem de terno. Portanto, é um quadro em branco – aquelas letras deixam a folha vazia de papel mais vazia do que se nada estivesse escrito. São números de massa negativa. O homem de terno sua em sua cadeira de couro, pois ele não tira o terno para trabalhar, mesmo quando está sozinho em seu cubículo a martelar os dedos em botões. Ele tem medo de sentir-se nu sem a segurança que o terno oferece – a certeza de ser mais que os outros ao seu redor, de ter mais um número a exibir. Sem esse número, sem esse adendo, ele seria convidado à histeria de existir. Ele teria que confrontar-se e aperceber-se só e, na solidão, entender-se consigo mesmo. Seria cansativo, ele teria de criar-se um nome e uma personalidade, talvez. E talvez dar-se cores e formas, talvez. E, contrapesar de tudo, continuaria só, talvez. Pois do que adianta o canto do rouxinol para um triângulo isósceles? Desenhar sorrisos em volta de um cheque? Números continuam números, e só fazendo sentido em volta de números. E na cidade grande, todos são números. Ter um nome, uma personalidade, ânimo, é doença. Vai para além de tudo que é bom e correto e saudável. Toda medicina atua em números. O homem de terno continua a trabalhar, suando, em seu cubículo sem luz. Mas não tem problema, pois o dia mesmo não tem luz, está nublado.

Em algum lugar, um pássaro canta. Não sei onde, talvez perto da Firma X, talvez perto de onde eu esteja. Não o ouço exatamente, mas acredito ouvi-lo. Seu canto é instintivo e sem paixão, pois paixão é uma infecção que necessita de muito espaço na cabeça para se deixar envenenar. É um curto-circuito de uma mente desnecessariamente atarefada, quando muitos pensamentos entrechocam-se, e acreditamos toda nossa existência ser definida por um algo em particular – como o desejo por algo, vício por algo, toda religião, crendice e ciência, essas coisas que a humanidade gosta de acreditar em. Quando apaixonados, somos menos do que costumamos ser. Matéria negativa, como números vazios, como palavras vazias numa folha de papel, como o homem de terno suando. A paixão nos aproxima do verme. Por sorte – ou azar – ou sei lá o quê – pássaros não podem para a paixão. Seus cantos são desapaixonados e logo se indistinguem no silêncio marolante da cidade, de carros, de ônibus, de suspiros pesados de números em caminhada para inúmeras Firmas X. Pássaros apenas cantam, e um pássaro, em algum lugar que eu não saia onde seja, canta um pássaro. Sua árvore é um último ponto verde em meio ao cemitério de cinza de edifícios. Daqui há dois anos, irão derrubar a árvore e colocar uma estátua no lugar. Em vinte anos, a estátua irá desbotar e homens de terno irão querer mudá-la por outra. Em cinquenta anos, o próprio concreto onde o pedestal da estátua está irá ceder e cair por causa de má-construção por parte de outros homens de terno. Curiosamente, nenhuma mulher de terno esteve nesse trabalho. Existem razões para isso, mas o canto imaginário do pássaro me impede de concentrar a mente nestas mulheres igualmente imaginárias. Mas não me troço por isso, elas seriam tão igualmente incompetentes quanto os homens. No final, Homem e Mulher são apenas nomes. E ninguém tem nome nas cidades, somente números.

O dia está nublado. Não vai chover, tenho certeza. Mas já tive certeza de outras coisas antes. Ter certeza é um convite ao desastre. Não ter certeza, um convite ao à catástrofe. Tenha semi-certeza, esse é o caminho do meio. Não que o meio seja bom. Na maioria das vezes, o meio apenas leva a um muro. Mas na cidade, tudo é muros. Em cada muro, famílias de objetos se esvaziam a cada dia. A própria ideia de família já é ultrapassada, mas como aprenderemos a contar se não tivermos famílias? A matemática social é uma ciência estranha, mas todos as percebemos instintivamente. Como a canção desapaixonada do pássaro, cantamos desapaixonadamente o nosso instinto numérico.


Um pássaro canta, agora posso escutar. Uma música, acho que a conheço...

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sábado, 20 de setembro de 2014

Animalia (1) - As ruas


Em Animalia, é muito fácil se perder por entre as ruas pequenas e vielas escuras, sendo preciso se espremer muitas vezes para poder caber numa passagem mais estreita. Às vezes, o espaço é tão pequeno entre a parede de um prédio e a lateral de uma casa de show que é possível sentir no corpo o tremular da música. Apesar do silêncio das altas horas da noite, em todo canto é capaz de se ouvir o murmúrio das batidas graves de um ritmo dançante. De cada buraco, de cada toca, cada bicho e criatura sai à noite para uivar. Conquistar a solidão da noite com seus muitos corpos e muitas cores, como caça e caçadores, a presa sendo tanto vítima quanto algoz. A atmosfera é densa de expectativa, e por todo canto se é possível enxergar semblantes decididos e olhares transbordando de desejo.

Num canto, uma matilha de cães vestia jaquetas escuras e corria os olhos irrequietos para lá e para cá. Cabelos aprumados, mãos nos bolsos, se esforçavam meticulosamente para transmitir um ar de desleixo que só é possível de se alcançar após diversas horas perdidas em frente a um espelho. Em outro lugar, um bando de gatos se esgueirava aos saltos, todos com roupas coladas ao corpo, calças longas, camisetas longas, ambas listradas. Cada passo que davam com suas patas desenhava curvas elegantes no ar. Conforme seguiam em frente, os gatos cruzaram olhares com os cães. Pararam estacados, apertando os olhos, dilatando as pupilas e sibilando. Os dois grupos mantiveram distância, os corações se espremeram entre os dedos. Os gatos ondulavam os ombros, hipnóticos. Os cães expandiam o peito e destacavam pescoços e mandíbulas.

Havia uma nota oculta de desafio entre os dois grupos, uma afronta inaudita, implícita. Uma cadela ousou primeiro, um passo à frente, coxas desnudas para o vento frio da noite. A maioria dos gatos recuou, mas um resolveu não arredar. Teimou e, duas vezes mais ousado, com dois passos se aproximou. Um sorriso nos dentes adicionava gosto ao seu ato, um tempero levemente ácido de impertinência. A cadela baixou suavemente os olhos, como que incrédula, quedou um tanto o quadril, despontou a lateral do pescoço e levou uma mão à cintura. Então, abriu um sorriso, bem aberto, bem largo, de uma desfaçatez quase que obscena. O jovem gato enrubesceu, suas coxas vacilaram e ele sentiu o peito comprimir, palpitar.

Mas antes que fraquejasse completamente frente à postura da cadela, uma gata de seu bando veio ao seu auxílio e firmou-se ao seu lado. Pequena e perigosamente esbelta, roçou-se aérea em suas costas num abraço deslizante. as pontas dos dedos segurando em sua cintura e os lábios finos sussurrando em seus ouvidos. O gato fechou os olhos e miou, trêmulo por um momento, hesitante. A cadela lá no outro canto ria, projetando ainda mais seu quadril largo e parecendo estender sua presença por toda a rua. A gata suavemente se interpôs, fechando olhares com a cadela e, cinco vezes decidida, caminhou na direção dela. Pé ante pé, a cauda balançando, a cabeça baixa, o olhar fixo, o sorriso frio de dentes finos, aproximou-se impassível, decidida.

A cadela pensou em recuar, até mesmo levando um pé atrás. Mesmo assim, fechou os punhos e manteve-se firme. O resto dos cães latia, uma metade era latidos de incentivo, outra metade era latidos de escárnio. A gata chegava perto, cada vez mais perto, até seus cabelos longos pretos e azuis já fazerem cócegas no focinho da cadela. Agora, ambas se olhavam, imóveis, os corpos oscilando no ritmo de suas respirações. A cadela estava tensa, os lábios levemente retesados num rosnar discreto. A gata, calculada e fria, dançava no canto dos olhos da cadela, quase escapando de seu campo de visão. De súbito, aproximou o lábio fino contra a bochecha da cadela, roçando-lhe suavemente e com a ponta de seus dentes finos arranhando-lhe a pele.

'Rosnas, por que rosnas?', disse num tempo quebrado, a ponta de sua língua áspera tocando o rosto da cadela. Mas ela não soube responder, pois a voz não encontrou ar para ser dita. O peito da cadela se expandia em saltos, o coração trepidava tanto que suas batidas podiam ser ouvidas facilmente pela gata. 'Treme tanto para quem tanto fez tremer, das patas à cauda, do peito ao quadril', disse a gata enquanto deitava a boca no pescoço da cadela, o peito no peito da cadela, as coxas nas coxas da cadela. 'Por que tremes tanto, tu que antes foste tão decidida e forte e alta e possante?'.

Com uma voz orgulhosa apesar de tremida, respondeu a cadela: 'Não sou fria como um gato, distante como um gato ou sádica como um gato. Minhas emoções eu pisco na obviedade de meu rosnado e nos gestos de meu grito. Eu tremo como um cão e meu coração bate forte em meu peito como convém a um cão, sem disfarces ou dissimulações. Se tremo agora é porque meu coração quer correr pelo meu corpo, e a sensação é tão forte que nem me cabe nas pernas, vês? Tremo porque sinto e emociono, coisas que uma gata fria assim jamais há de saber!'.

A gata sorriu, primeiro num canto da cadela, depois no outro canto. Suas mãos se cruzaram nas costas dela e seus olhos, levantados, se afundaram na escuridão da noite dentro dos olhos da cadela. 'Como podes dizer eu ser assim fria, assim distante, dissimulante e criminosa? Não me vês tremer, amiga? Não me vês tremer, amante?', e a gata arranhou as costas da cadela e aproximou mais as coxas das dela, colando-se nela. 'Vês, cadela? O quanto tremo por ti? Aqui, bem aqui', e fechou as coxas nas dela, 'Vês-me tremer?'. Sem mais aguentar-se, a cadela lambeu a boca da gata. A matilha de cães uivou, o bando de gatos miou. Logo as formas de todos se mesclariam nas sombras.


Não longe dali, as caixas de som cantavam batidas graves pela noite, dentro de uma casa de show. Dela, um corvo, um cervo e um coelho se aproximavam a passos rápidos...


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domingo, 7 de setembro de 2014

Sangue Novo (1) - O limite de Dezessete



Numa pocilga, luzes foscas e fugidas tremem em placas de um neon velho e decrépito, as cores dos sinais elétricos zumbindo um grito de agonia como se espasmassem à beira da morte. Por todo lado, mais ratos, insetos e vermes do que os olhos possam contabilizar (ou canibalizar), e nem todos andando rente ao chão. A maioria rastejava, joelhos despedaçados levando consigo um rastro de sangue roto e baço. Outra maioria caminhava sobre pernas, pés e patas, rindo, apontando, em ternos agêneros de acrílico estéril. Buzinas não permitiam o silêncio, servindo como a ponta aguda do acorde da desfeita e malefício daquele lugar. Gritos acompanhavam desritmados, juntamente com choros, barulhos de sucção e o arrastar de peles. Na base desse acorde, servindo de fundo grave e dando ritmo à batida, motores de uma pneuma doente, trac-trac-trac, estalando como explosões inaudíveis mas cujas notas graves eram de uma possância tamanha que podiam impor seus rítmos aos corações de todos os ouvintes e quebrar-lhes os peitos e desfiar-lhes as carnes, os músculos e tendões. Trac-trac-trac, batia gongórico, um relógio de pandemônio, os ponteiros derretendo nas pontas, os números caindo do visor, trac-trac-trac.

'Sabia que te encontraria aqui,' falou uma figura longa e fina, um pássaro com pneumonia, 'Mas no fundo do fundo, não queria'. Tinha ombros levantados e largos, um manto feito de inúmeras camisetas remendadas, um rosto pálido pelas luzes que caíam em seu rosto pelo neon velho de doenças hospitalares. Olhava como uma sombra muito extensa, seus olhos deitados sobre um dos vermes naquele antro. As buzinas soavam ao fundo, e os motores graves continuam pulsando a fumaça para o sistema, trac-trac-trac. 'Sabia, e como eu sabia', e com a ponta do pé direito, trancado numa botina de solas grossas e enlameadas – pela sujeira úmida que fluía por todo aquele beco fundo, berço imundo –, tocou a criatura acocorada no chão que abraçava as pernas como uma semente, cabeça perdida entre os joelhos, cabelos longos e tentaculares como veias escuras sobre as pernas nuas, os pés nus, a pele crua, 'Mas não queria'.

Chutou a criatura. Nenhuma resposta. 'Aquietaste finalmente ao útero estéril em que te encerras?'. Novo chute, mais forte, nas mãos, nos cabelos, a bota suja mais suja ficava ao encontrar-se com os cabelos puídos do verme, do rato. O pássaro esqueletal sibilou, o ar passando através de seu peito, escapando agudo pelas frestas das costelas. Sem meios-termos, com uma voz desafetada, um tanto distante e meio desinteressada, disse, 'Já te divertiste o suficiente. Levanta'.

A figura catatônica tremeu. Um tique nervoso, o contra-tempo da batida de um coração, como se uma corrente de cinco mil amperes alternados corresse através de suas tripas. Lentamente, cada junta rangendo, ranhento, ergueu o ninho de arame de fios emaranhados da sua cabeça, deixando surgir seu rosto antes embainhado na bacia dos joelhos. Despontando do rosto terminalmente flácido de carnes soltas, olhos empoçados fitaram (em desafio, chacota, jocosidade?) a silhueta acorcovada do pássaro de ossos. Nenhuma resposta. Silêncio. Uma linha torta fincou um sorriso feio em seu rosto. 'Levanta', diz o pássaro.

'Levanta?', diz numa irônica pergunta o verme com sua não voz de unhas arranhantes. 'Sim', o pássaro. O verme, 'Não sinto o meu coração'. O pássaro, 'Se não sente, não precisa dele'. O verme funga e refunga, sardônico, 'Perdeu a noção inteira de toda sanidade, de tudo que é sanitário, afastou-se de toda medicina. Não mais distingue vida de morte?'. Um carro se choca contra um orfanato ao longe, crianças carbonizadas com seus ossos em chamas gritam e mordem as chapas de metal do veículo. Um indivíduo roliço tenta apagar o fogo com vinho. Uma apocrifia de barulhos horrendos.

'A distinção entre escuro e claro é apenas uma ilusão – ambos dormem na mesma cama', responde finalmente o pássaro, depois que sua voz pôde superar os gritos ao fundo. O verme ri, arqueando os braços como se fosse um boneco fantoche,

'Não há mais notas, a música agora travou num revertério – e eu sou o refluxo da azia de tudo', e o verme estendeu os braços, como se envolvesse todo o ambiente mórbido em que emplastrava seu corpo, colado contra a parede, o chão, a rua, o chorume, 'Tudo, sou o esgoto de tudo'. O pássaro, impassível, 'Se assim é a música que te encanta, então canta. És o que fores'. Fez uma pausa e, frio, continuou, 'Levanta'.

O verme, seus olhos em piscinas de águas paradas, não se moveu, 'Tolo, que me veio até aqui, quais ideias foram pintadas na tua mente? Com qual grandeza imaginaste minha estatura, o enquadramento de minha forma, para encontrar somente esta ferradura, rasura, feia e urdida criatura?'. E abriu mais os braços, desfraldando mundos de carnes embotadas, costuradas, e amargas 'Não tenho mais asas, não tenho mais pluma ou pena, não tenho mais vôo'. O pássaro noturno de camisas remendadas chutou as costas do verme, fazendo algo tombar-lhe das espáduas. Olhou, com olhos de agulha, e sorriu, 'Ainda tens uma asa'.

'Uma asa, que bem faz uma asa? Uma nota? Um nome? Um sonho? Um pulso?', falou descrédulo e desditoso o verme. Impassível, o pássaro, 'Ainda tens uma asa'. O verme soltou um ínfimo de esgar, seu rosto retornando para a baía de seus joelhos, 'Uma asa, que adianta? É nada, uma asa é nada', com o rosto perdido na escuridão, 'Sou o remix de um desespero'.

O pássaro ergueu o punho – uma corrente fosca transpareceu sem brilho nas luzes doentias de neon. 'Existir é um remix eterno. Todo ponto é um recomeço, todo fim um recontexto'. A corrente grossa ia de si para o pulso do verme, invisível mas, ainda sim, presente, existente. 'A única constância que poderíamos constar é a da mudança – mesmo a morte depende de um referencial e, como certeza, não é a das melhores'. Ao longe, uma guitarra distorcida parecia ganhar fôlego, rasgando através das buzinas dos carros. Um baixo elétrico pisava acima do motor, trac-trac, do motor relógio que vazia a fumaça rodar no sistema, trac-ck. O verme reergueu seu rosto das águas de seus joelhos, olhos como um cemitério num manguezal.

O pássaro fitava o verme com a seriedade de um disco de vinil. 'Dezesseis vezes vim a ti, e agora venho mais outra vez, procurando que respondas, tua resposta estando agora no limite de dezessete'. Os olhos se chocavam como mercúrio sólido, as correntes dos dois tilintavam. O mundo segurou a respiração, 'Tua resposta?'.

O verme, um sorriso. Um acorde distorcido de guitarra assomou-se mais alto que todo o desatino. O chão tremeu, os ventos uivaram como um alcatéia lunar. O pássaro noturno alcançou um fósforo já usado, já gasto, inútil e o colocou no buraco da fechadura das correntes, das algemas. Imediatamente, o ferro acendeu em chamas, e as chamas dançaram até o verme, tomando-o por completo, cada milímetro de seu vazio. E logo era somente pele carburada, osso acarvoado e, em menos do que um átimo, cinzas. Mas o fogo, infinito, o fogo não termina. Destruiu tanto quanto recriou. Primeiro a gosma, depois os pés ossudos, depois o músculo, depois a voz. Uma pomba de uma asa só, piando mais alto que a lua, em fogo, flama. Tudo em chamas, em chamas, chamas.


Fênix.

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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Nemo no Festival Oriental (1)



Depois de parar o carro numa vaga, Nemo e Natasha foram andando pelo estacionamento apilhado de carros, atravessaram a rua e chegaram na bilheteria. Natasha tinha seus cabelos longos e loiros presos indefectivelmente num coque, vestia um terninho com saia executiva e usava um salto agulha que fazia sua grande estatura ficar ainda mais alta. Estava fazendo cosplay de algum personagem de anime, mas Nemo não conseguia lembrar de qual.

'Eu já falei quem é o personagem que estou me fantasiando', comentou Natasha, 'Três vezes no carro, e você continua perguntando. Não vou repetir de novo'. Mas Nemo não pareceu prestar atenção na bronca da amiga, seus olhinhos multi-coloridos dançando de um lado para o outro, observando as enormes filas da bilheteria. 'Afe, vamos ficar pelo menos meia hora aqui', resmungou Natasha, 'E o pessoal já está todo lá dentro me esperando!'.

'Ué, mas eles não podem ir vendo a feira? Você pode se encontrar com eles depois em algum lugar', disse Nemo. 'Não!', Natasha negou veemente, 'Estamos fazendo um grupo de cosplay e marcamos todos de fazermos tudo juntos. A culpa é minha, eu devia ter passado o terno ontem. Droga, detesto me atrasar!'.

'Hum', foi a única resposta que Nemo deu, enquanto Natasha cruzava os braços sobre os seios e fechava a cara. Contudo, nem toda a irritação da amiga conseguiria perturbar Nemo hoje. Ili usava uma camisolona bem larga e branca, que descia até o comecinho das suas coxas. Um shortinho preto ia mais para baixo, ficando dois dedos acima dos joelhos. O resto das pernas estavam nuas, terminando em sandálias de tiras trançadas nos calcanhares. E seus cabelos bem longos estavam bem pálidos, quase brancos, mesclando com o branco da camisola. Natasha até havia perguntado se Nemo estava se fantasiando de nuvem, mas Nemo apenas negou silenciosamente e sorriu.

'Droga, essa fila não anda! E o que é isso? Por acaso eles estão só com três guichês funcionando? Isso é um absurdo, um evento desse tamanho!', reclamava Natasha. Nemo, contudo, parecia estar em outro planeta, dando grunhidinhos monotônicos como resposta. 'Oh, desculpe se estou sendo chata', Natasha falou um tanto ácida, já irritada com os grunhidos de Nemo, 'Talvez fosse melhor se eu...'. Mas ela nem terminou de falar, pois Nemo apontou enfaticamente para longe e disse, 'Olha, acho que aquela ali é Juli!', indo saltitando na direção para onde apontara.

Natasha irritou-se ao ser abandonada na fila, mas logo tomou certa diversão em ver Nemo indo de um lado para o outro, encontrando diversos conhecidos nas longas filas. Parecia até que Nemo conhecia todo mundo! Não deu nem cinco minutos e retornou, dizendo 'Vem Natasha. Tenho uns amigos lá na frente'. Apesar de não gostar da ideia de furar fila, Natasha se sentiria pior caso se atrasasse ainda mais. Seguiu Nemo até o grupo dos amigos dela, um tanto encabulada. 'Obrigada', disse Natasha, 'As filas hoje estão mesmo terríveis!'.

'Não tem problema', disse um rapaz vestindo uma roupa colorida, sorrindo, 'É sempre bom poder ajudar. Seu cosplay está ótimo, deve ter dado o maior trabalho de fazer. Eu só não descobri ainda qual é o de sua amiga. Aliás, ela ainda não me disse o nome'.

Natasha sobressaltou-se, 'Hun? Amiga? Nome?', e, com as mãos na cintura, perguntou abestada, 'Nemo, por acaso você conheceu esse pessoal agora na fila, foi?'. Nemo apenas colocou as mãos atrás das costas inocentemente e deu a língua para Natasha. 'Haha, você é uni menini travessi, sabia?'. O rapaz de roupa colorida pareceu extremamente confuso. 'Menini? Como assim?', perguntou.


Depois de todos já terem entrado no festival, Natasha agradeceu mais uma vez pela ajuda e os dois grupos se despediram, apesar de o grupo do rapaz de roupa colorida ainda estar um tanto confuso com Nemo. Em seguida, olhando para o lugar enorme e pensando no que fazer, Natasha diz 'Bem, agora que já entrei, eu vou procurar pelo meu grupo. E você, garoti, vem comigo?'.


'Nah, vou dar uma volta. Logo mais me bato com vocês'. Natasha sorriu, abraçou i amigui e disse, 'Sem problema. Qualquer coisa, você tem meu celular. É só ligar'. Nemo apenas concordou em silêncio, e, aos saltos, foi andando pelo enorme festival, desaparecendo entre a multidão de pessoas e cores.

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