Animalia
– Dia... 28 11 2014
(Obs: esse capítulo é bastante pesado. Além disso, para entender suas nuances e seu impacto, é importante que você tenha pelo menos lido boa parte dos capítulo de Animalia. O leitor foi avisado)
'Você não vai descer?', perguntou a menina de cabelos marrons,
brunos. O sino do intervalo tocava insistente e alto, colocando em
disparada as várias crianças para fora da sala de aula. Mas o
menino de dedos finos a quem dirigia a voz continuava parado, mexendo
em alguma coisa dentro da mochila. A menina colocou as mãos na
cintura e empertigou-se, 'Ei! Vamos descer, já bateu o intervalo!
Quero comer alguma coisa'. Tirando os olhos da mochila para encarar a
bruna, o menino de dedos finos fez um sinal para que esperasse.
Enquanto isso, quase toda a 8a série já havia deixado a sala, e a
professora terminava de arrumar seus livros para poder descansar.
'Parece cansada hoje, senhorita Dickermann', assim ela foi recebida
pelo professor de geografia quando entrou na sala dos professores.
Respondeu com uma reverência discreta, deixou seu material sobre a
mesa e alcançou o maço de cigarros no bolso. Tomou o isqueiro em
mãos, acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda. 'Sempre tão
fria, devia sorrir mais. Fica tão deselegante desse jeito',
novamente o homem dirigiu-lhe a palavra, com ares de doçura e
pintalgada de meias desculpas. Ela fechou os olhos e suspirou,
exalando a fumaça do cigarro sobre si. Era esperado sempre que
andasse em sorrisos, sempre respondesse às piadinhas com delicadezas
– não sabia como as suas colegas conseguiam. Vai ver fazia parte
da evolução, de adaptar-se ao meio e aceitar seu papel nas coisas
como são. Mas nunca conseguiu fazê-lo – nunca quis, e nunca
suportou a ideia. Virou-se para trás e percebeu o olhar do professor
de geografia rapidamente mudar de foco, desviando de onde
provavelmente estava – as suas pernas, bunda, quadril? - para poder
encará-la desajeitamente nos olhos. Num sorriso ranhento, tropeçando
num sem-jeitismo nas palavras, ele novamente buscou alguma coisa,
'Tem tido problemas em casa, senhorita? Está realmente com uma cara
de quem precisava sair mais, se divertir'. A mulher puxou outra
tragada. Era claro que ela tinha que sair, pois assim estaria mais
apresentável, menos feia, rabugenta, sim? Isso também era esperado,
também era exigido. Com sua postura apática, inerte, olhos
cravejados de olheiras, ela fitou profundamente o homem e, num tom
feio, disse: 'Às vezes você não tem medo de como as coisas
estão?'. Pego de surpresa, o homem deu um sobressalto, 'Como assim?
Medo de quê?'.
O sinal ainda tocava, e as crianças ainda, feito manada, se
derramavam sobre as escadas. Um menino da 8a série, gordinho e de
cabelos com caracóis, descia os degraus sozinho em meio à multidão.
Num dos corredores entre os andares, uma voz pesou sobre seus
ouvidos, 'Hei!'. Soava autoritária e demandava toda a atenção. Não
que ele quisesse isso. Queria descer, esconder-se entre as mesas,
comprar o lanche, comer esquecido para depois voltar para a sala e
ficar lá, sem incomodar, sem ser encontrado. Mas não tinha escolha.
Virando o rosto, amedrontado, percebeu o rapaz alto do 2o ano com os
braços levantados e apontando para si. 'Venha cá, gordo', ordenou.
O menino parou no meio das escadas, quase sendo atropelado pelas
outras crianças. Ele ponderou na possibilidade de correr, mas sabia
que seria inútil. Não podia fugir. Aquele lugar, aquela escola era
prisão, jaula. Não havia escolha, nem havia saída. Com o rosto
baixo, seus cabelos de caracóis saltitando, dirigiu-se até o rapaz
do 2o ano.
A professora olhou para a expressão sincera de ignorância do homem
e deu outra tragada no cigarro: 'Se você não percebe, então quer
dizer que não sente medo. Ignore minha pergunta então'. O homem não
gostou e gesticulou com as mãos, 'Ora, vamos lá! Não seja tão
evasiva após falar uma coisa dessas. Existe alguma coisa da qual eu
deveria sentir medo?'. Ela virou os olhos – sentia como se tivesse
que explicar a uma pessoa sendo queimada viva porque ela deveria
fugir das chamas: 'Nós vivemos nesse mundo como se o próprio ar nos
esmagasse'.
No carro, a professora de matemática acompanhava a menina da 6a ou
7a série – sinceramente, a professora não conseguia se lembrar
naquele momento – que vinha, timidamente, até o carro. Carregando
o caderno contra os seios quase inexistentes, ela parou de fronte ao
vidro da janela. Conforme a professora foi baixando o vidro, a menina
abria um sorriso trêmulo, 'Professora Aila?'. Com óculos escuros
refletores tampando seus olhos, a professora retribuiu o sorriso
tímido da menina com um de dentes incisivos e lábios finos, 'Oh,
como vai querida? Está procurando por alguma coisa?'. A menina
permaneceu de pé, travada, ali do lado de fora, com um aspecto um
tanto perdido, embaraçado. 'Bem...eu...', ela montou algumas
palavras, mas não conseguiu elaborar nada muito lógico. Ficou ali,
sonsa, olhando para a professora, seu coração como uma lixa
raspando contra o peito. A professora de matemática, ainda sorrindo,
abriu a porta do carro e disse: 'Entra, querida'.
'Respiramos', continuou Dickermann, soltando mais fumaça pela boca,
'mas é como se lentamente fizéssemos isso se tornar errado. Como se
o ar fosse nocivo, como se não devêssemos convidá-lo para dentro
de nossos pulmões. Cada vez que expandimos o peito, é como se um
soco estalasse dentro de nós mesmos, lá no fundo. Assim também o
mundo se nos apresenta, como essa coisa, esse treco tão afastado de
nós e, ao mesmo tempo, tão imprescindível, que nos encontramos
presos a ele. Como numa gaiola'.
O gordinho se esbateu-se contra a parede do banheiro, empurrado pelo
rapaz do 2o ano. Estava preso. 'Vamos', o rapaz se aproximou, grande,
forte, oprimente, 'Repete o que você disse'. O menino buscou segurar
as pernas para não tremer. Seus cabelos encaracolados balançavam em
frente aos olhos: 'Repetir o quê?...'. O alto não gostou e o
imprimiu com força contra os azulejos sujos, 'Acha que estou de
brincadeira? Acha que isto é engraçado, sua bicha!', e deitou um
tapa com as costas da mão no rosto do menino. O banheiro estava
deserto.
'Por favor, senhorita Dickermann', o professor de geografia já
parecia desinteressado, 'Você não vai começar a criticar o
sistema, o governo e essa baboseira toda, né? Estamos em intervalo e
não estou afim de ficar perdendo o tempo com discussões assim,
infrutíferas'. A mulher balançou a cabeça, apagando o cigarro e
olhando através da persiana da janela que dava para o
estacionamento: 'Fala como alguém que foge. Eu compreendo: a pressão
de tudo isso que nos envolve, todo esse ar que nos enforca os
pulmões, é incombatível. É mais fácil aceitarmos tudo como é e
fechar os olhos para a asfixia que nos infecta. Mas, mesmo que
cerremos os olhos e finjamos não ver, as coisas continuam lá, em
nós. Ativas. Atentas. Reprimidas. Como feras num circo ou zoológico
decadente'.
A menina bruna levou a mão à boca, 'Garoto, guarde isso!'. O menino
de dedos finos sorria esguio para ela, enquanto uma cauda felpuda
ereta se insinuava por debaixo de seu short. 'Qual o problema? Só
tem nós dois aqui na sala', retorquiu, alisando com a mão a cintura
da garota. Ela tremeu um pouco, ainda com uma mão sobre a boca, mas
a outra agora alisava a ponta da cauda dele, 'Mas não pode na luz,
não pode, ain...', ela agachou um pouco com um beliscão dele em sua
cintura. 'Ninguém está nos vendo, relaxa'. Os olhos da menina de
cabelos brunos meio fecharam conforme sua boca soltava uivos baixos.
Sua cauda começava a aparecer, peluda, debaixo do vestido. 'Nossa,
você tem um rabão, sabia?'.
Dickermann continuou, 'Vamos criar razões e motivos para justificar
essa jaula, todo tipo de explicação – ética, científica, divina
– para legitimizar nossas ações. Contudo, quanto mais tentarmos
ignorar, quanto mais virarmos o rosto para não ver, mais fundo
estaremos cravando esse punhal em nosso peito. Somos nós mesmos que
causamos esse sufocamento. Vivemos na linha limite de uma sociedade à
beira de um pânico moral, não sabendo como lidar com os problemas
que criou para si'.
'Você tem sido uma ótima aluna', disse a professora de matemática,
as mãos subindo pelas coxas da menina da 6a ou 7a série. A garota
sorriu, afastando as pernas como já o fizera outras vezes para a
professora, 'Obrigada...'. Em seguida, a boca da mulher encontrou a
da menina, num beijo agarrado. Dentro do carro era escuro pelas
janelas de filme preto, profundo. 'Hoje trouxe coisinhas, como havia
dito na última vez', falou a professora, abrindo o porta malas do
carro e tirando alguns objetos. A menina corou, 'Professora
Aila...como?'. Mas a professora de matemática, seus olhos agora
tornando amendoados como os de um gato, não deixou a menina terminar
de falar. Reclinou o banco dela e disse, 'Apenas deite de bruços,
querida'.
O professor de geografia deu uma risada, 'Senhorita, até agora não
entendi exatamente onde você quer chegar com tudo isso'. A mulher
balançou o pescoço vigorosamente, frustrada, 'Sinceramente...olhe à
sua volta, olhe!', e ela abriu os braços, como se tomasse neles o
mundo, 'O circo está em chamas'.
Dentro de um dos cubículos do banheiro, o rapaz do 2o ano montava
sobre o da 8a série. Os chifres de touro dele roçavam na nuca do
gordinho, com ódio, 'Você nunca mais irá ficar de boiolagem de
novo, está ouvindo?'. E pontuava as frases com estocadas grosseiras
no menino que segurava o choro.
'Vivemos numa sociedade que prefere imaginar uma fantasia de mentiras
a confrontar a realidade de seus próprios impulsos'.
'Pára', disse de novo a menina de cabelos brunos, empinada sobre uma
das mesas da sala. O menino de dedos finos segurava em sua cintura
até sangrar, 'Já está acabando, fica quieta senão podem ouvir'.
'Mas está doendo', grunhiu a menina, recebendo em troca um movimento
mais vigoroso contra si.
'E quanto mais tentarmos fingir o que não sejamos, quanto mais fundo
enfiarmos a faca em nossa pele, mais forte o que há em nós irá
rugir até poder ser ouvido e entendido. Nem que para isso tenhamos
que nos rasgar'.
A menina fechava os olhos enquanto a mulher manipulava o brinquedo
atrás de si. 'Querida, não sabia que você aguentava tanto assim.
Estou impressionada, você realmente sempre foi uma aluna
excepcional', dizia a professora. A menina, por sua vez, não falava,
não respondia aos toques nem sinalizava. Apenas ficava ali,
reclinada sobre o banco do carro, silente.
'Quando os palhaços não mais conseguirem segurar as chamas do
circo, o que será que vai acontecer? Talvez seja esse o meu medo',
concluiu Dickermann, procurando outro cigarro para fumar.
Novamente, o sinal tocava. O intervalo havia terminado. No banheiro,
o rapaz do 2o ano acabava de afivelar o cinto: 'Agora você aprendeu,
não é? Se ficar de viadagem de novo, você vai ver'. Então
dirigiu-se para, virando-se antes de sair para dizer, 'E vê se tira
essa cara de puta do rosto, seu escroto'. E bateu a porta. O menino
da 8a série levantou as calças arriadas enquanto chorava baixinho,
seus cabelos de caracóis tremendo.
O professor de geografia se despedia da colega, sem esconder o quão
enfastiado estava com toda aquela conversa. Dickermann sabia que
havia falado para ouvidos desinteressados, mas não se importou.
Apagando algumas cinzas do cigarro, disse: 'Lembre-se: Nós somos
produto de tudo aquilo que não nos toca'. O professor de geografia
em seguida fechou a porta da sala dos professores atrás de si.
Os outros alunos voltavam para a sala, e as pessoas íam tomando seus
lugares. A menina de cabelos brunos também ia voltando para sua
posição na sala. Sua bunda doía, seu rosto ainda engolia o
choro...mas toda a situação, a adrenalina, a proibição, tudo era
bom demais. Ela olhou para trás, para o menino de dedos finos e viu
que ele também olhava para si. E ela tanto ele sabiam que iriam
repetir aquilo novamente.
Sozinha na sala dos professores, Dickermann falava consigo mesma:
'Nós, essas belas criaturas'. Olhou pela persiana da janela e viu
uma aluna saindo às pressas do que parecia ser o carro da professora
Aila. Dickermann deu uma última tragada no cigarro e uivou, 'Estas
belas crias tuas...'.