segunda-feira, 22 de setembro de 2014

As ruas são cinzas (1)



O dia veio nublado. Ontem estava sol, é verdade. Mas não era um indicador de alguma estação do ano. Apenas tinha feito sol, e hoje está nublado. Através das revoluções dos climas e dos dias e dos anos, é possível calcular precisamente até os fios de cabelos da primavera. É emocionante como pode-se dar nome para cada fase do inverno e para cada alteração do verão ao outono. Mas o dia estar nublado não implica em grandes planos, ou grandes tramas. Apenas em nuvens no céu. E nem são tantas a ponto de o céu ficar escuro. Assim, não parece que vai chover. As nuvens estão estáticas e claras. Não venta nem troveja. O sol que atravessa o teto de nuvens é quase abafado, mas não chega a tanto. A pessoa na rádio aponta que o dia permanecerá assim, até pela tarde toda. Até lá, haverá mais movimento na rua. Por hora, está tudo deserto. Um barulho chicoteia entre os obeliscos de prédios enormes – aquele barulho indescritível do vazio de uma grande cidade, parecido com um soco de vento no fundo do ouvido. É um som atmosférico, pacato, vagabundo. Se não prestar atenção, nem o percebe, acaba se mesclando nas ondas eletromagnéticas do seu cérebro. Como o som da chuva suave, molhada. Mas hoje não vai chover.

Um carro desponta solitário, correndo para dentro do labirinto de concreto da cidade. Sua trilha sonora ainda fica algum tempo suspensa no ar, mas logo se perde no silêncio. Dentro dele, um homem – de terno – ia para alguma firma. A firma teria um nome, mas todos os nomes de firmas são irrelevantes. Nomes de firmas só servem para seduzir clientes pois, para a cidade, só interessa o número dela. É pelo número que se paga as taxas e os impostos os quais, por sua vez, também são apenas números. Mas a firma desse homem de terno tem um nome, tenho certeza, mas não consigo acertá-lo. Poderíamos usar como seu nome algo simples, como Firma X. O bom desse nome é que o X lembra números – números desconhecidos. E o bom dos números é que eles são quase totalmente impessoais. Pode ser que estimemos ainda alguns números mais do que outros. O um sempre está atrelado à ideia de começo, ou de primeiro colocado. O dois vem sempre com o gosto amargo da derrota, ou a promessa ilusória de uma companhia. O sete nos faz relembrar de coisas religiosas e profanas. O dez nos lembra duas mãos. Enfim, há números que são dotados de bastante personalidade. Tanta, inclusive, que praticamente nem mais são números. Enquanto isso, muitas pessoas só conseguem ser números.

Na cidade, todas as pessoas são números. E todas são números vazios. Como 40392934. Ou 934822345. Números emparelhados no ofício do despropósito. Se você se esforçar, encontrará alguma razão oculta nesses números, sim. Verá alusões a grandes imperadores, grandes vitórias, terríveis guerras, sim. Mas só se é possível chegar a tais conclusões depois de procurar muito. A procura se torna um fim em si mesmo e, de tanto procurar, você encontra qualquer coisa que queira. Inclusive personalidade para números. Na cidade grande, todas as pessoas são números sem personalidade. Na firma X trabalham muitos números. O homem de terno é um número também, mas ele acredita não ser. Acredita que seu terno pinta-o de alguma coisa. Mas, no final, apenas adiciona mais um número a ele. E todos os outros colegas o observam, com olhares meio-abertos, cansados, turvos, fracos como o mormaço de um dia nublado. Eles queriam aquele terno. Não sabem porque queriam, mas queriam. Normal.

O homem de terno não tira o terno para trabalhar, mesmo em sua sala, mesmo sozinho. Na parede da sala quase vazia, há um quadro em branco. Nele há texto, coisas escritas, parecem importantes. Mas só parecem. No final, todas aquelas letras são como números. Não têm personalidade. Se resumem a uma conta de soma, adicionando mais números ao homem de terno. Portanto, é um quadro em branco – aquelas letras deixam a folha vazia de papel mais vazia do que se nada estivesse escrito. São números de massa negativa. O homem de terno sua em sua cadeira de couro, pois ele não tira o terno para trabalhar, mesmo quando está sozinho em seu cubículo a martelar os dedos em botões. Ele tem medo de sentir-se nu sem a segurança que o terno oferece – a certeza de ser mais que os outros ao seu redor, de ter mais um número a exibir. Sem esse número, sem esse adendo, ele seria convidado à histeria de existir. Ele teria que confrontar-se e aperceber-se só e, na solidão, entender-se consigo mesmo. Seria cansativo, ele teria de criar-se um nome e uma personalidade, talvez. E talvez dar-se cores e formas, talvez. E, contrapesar de tudo, continuaria só, talvez. Pois do que adianta o canto do rouxinol para um triângulo isósceles? Desenhar sorrisos em volta de um cheque? Números continuam números, e só fazendo sentido em volta de números. E na cidade grande, todos são números. Ter um nome, uma personalidade, ânimo, é doença. Vai para além de tudo que é bom e correto e saudável. Toda medicina atua em números. O homem de terno continua a trabalhar, suando, em seu cubículo sem luz. Mas não tem problema, pois o dia mesmo não tem luz, está nublado.

Em algum lugar, um pássaro canta. Não sei onde, talvez perto da Firma X, talvez perto de onde eu esteja. Não o ouço exatamente, mas acredito ouvi-lo. Seu canto é instintivo e sem paixão, pois paixão é uma infecção que necessita de muito espaço na cabeça para se deixar envenenar. É um curto-circuito de uma mente desnecessariamente atarefada, quando muitos pensamentos entrechocam-se, e acreditamos toda nossa existência ser definida por um algo em particular – como o desejo por algo, vício por algo, toda religião, crendice e ciência, essas coisas que a humanidade gosta de acreditar em. Quando apaixonados, somos menos do que costumamos ser. Matéria negativa, como números vazios, como palavras vazias numa folha de papel, como o homem de terno suando. A paixão nos aproxima do verme. Por sorte – ou azar – ou sei lá o quê – pássaros não podem para a paixão. Seus cantos são desapaixonados e logo se indistinguem no silêncio marolante da cidade, de carros, de ônibus, de suspiros pesados de números em caminhada para inúmeras Firmas X. Pássaros apenas cantam, e um pássaro, em algum lugar que eu não saia onde seja, canta um pássaro. Sua árvore é um último ponto verde em meio ao cemitério de cinza de edifícios. Daqui há dois anos, irão derrubar a árvore e colocar uma estátua no lugar. Em vinte anos, a estátua irá desbotar e homens de terno irão querer mudá-la por outra. Em cinquenta anos, o próprio concreto onde o pedestal da estátua está irá ceder e cair por causa de má-construção por parte de outros homens de terno. Curiosamente, nenhuma mulher de terno esteve nesse trabalho. Existem razões para isso, mas o canto imaginário do pássaro me impede de concentrar a mente nestas mulheres igualmente imaginárias. Mas não me troço por isso, elas seriam tão igualmente incompetentes quanto os homens. No final, Homem e Mulher são apenas nomes. E ninguém tem nome nas cidades, somente números.

O dia está nublado. Não vai chover, tenho certeza. Mas já tive certeza de outras coisas antes. Ter certeza é um convite ao desastre. Não ter certeza, um convite ao à catástrofe. Tenha semi-certeza, esse é o caminho do meio. Não que o meio seja bom. Na maioria das vezes, o meio apenas leva a um muro. Mas na cidade, tudo é muros. Em cada muro, famílias de objetos se esvaziam a cada dia. A própria ideia de família já é ultrapassada, mas como aprenderemos a contar se não tivermos famílias? A matemática social é uma ciência estranha, mas todos as percebemos instintivamente. Como a canção desapaixonada do pássaro, cantamos desapaixonadamente o nosso instinto numérico.


Um pássaro canta, agora posso escutar. Uma música, acho que a conheço...

Image 1

Nenhum comentário:

Postar um comentário