O dia
veio nublado. Ontem estava sol, é verdade. Mas não era
um indicador de alguma estação do ano. Apenas tinha
feito sol, e hoje está nublado. Através das revoluções
dos climas e dos dias e dos anos, é possível calcular
precisamente até os fios de cabelos da primavera. É
emocionante como pode-se dar nome para cada fase do inverno e para
cada alteração do verão ao outono. Mas o dia
estar nublado não implica em grandes planos, ou grandes
tramas. Apenas em nuvens no céu. E nem são tantas a
ponto de o céu ficar escuro. Assim, não parece que vai
chover. As nuvens estão estáticas e claras. Não
venta nem troveja. O sol que atravessa o teto de nuvens é
quase abafado, mas não chega a tanto. A pessoa na rádio
aponta que o dia permanecerá assim, até pela tarde
toda. Até lá, haverá mais movimento na rua. Por
hora, está tudo deserto. Um barulho chicoteia entre os
obeliscos de prédios enormes – aquele barulho indescritível
do vazio de uma grande cidade, parecido com um soco de vento no fundo
do ouvido. É um som atmosférico, pacato, vagabundo. Se
não prestar atenção, nem o percebe, acaba se
mesclando nas ondas eletromagnéticas do seu cérebro.
Como o som da chuva suave, molhada. Mas hoje não vai chover.
Um carro
desponta solitário, correndo para dentro do labirinto de
concreto da cidade. Sua trilha sonora ainda fica algum tempo suspensa
no ar, mas logo se perde no silêncio. Dentro dele, um homem –
de terno – ia para alguma firma. A firma teria um nome, mas todos
os nomes de firmas são irrelevantes. Nomes de firmas só
servem para seduzir clientes pois, para a cidade, só interessa
o número dela. É pelo número que se paga as
taxas e os impostos os quais, por sua vez, também são
apenas números. Mas a firma desse homem de terno tem um nome,
tenho certeza, mas não consigo acertá-lo. Poderíamos
usar como seu nome algo simples, como Firma X. O bom desse nome é
que o X lembra números – números desconhecidos. E o
bom dos números é que eles são quase totalmente
impessoais. Pode ser que estimemos ainda alguns números mais
do que outros. O um sempre está atrelado à ideia de
começo, ou de primeiro colocado. O dois vem sempre com o gosto
amargo da derrota, ou a promessa ilusória de uma companhia. O
sete nos faz relembrar de coisas religiosas e profanas. O dez nos
lembra duas mãos. Enfim, há números que são
dotados de bastante personalidade. Tanta, inclusive, que praticamente
nem mais são números. Enquanto isso, muitas pessoas só
conseguem ser números.
Na
cidade, todas as pessoas são números. E todas são
números vazios. Como 40392934. Ou 934822345. Números
emparelhados no ofício do despropósito. Se você
se esforçar, encontrará alguma razão oculta
nesses números, sim. Verá alusões a grandes
imperadores, grandes vitórias, terríveis guerras, sim.
Mas só se é possível chegar a tais conclusões
depois de procurar muito. A procura se torna um fim em si mesmo e, de
tanto procurar, você encontra qualquer coisa que queira.
Inclusive personalidade para números. Na cidade grande, todas
as pessoas são números sem personalidade. Na firma X
trabalham muitos números. O homem de terno é um número
também, mas ele acredita não ser. Acredita que seu
terno pinta-o de alguma coisa. Mas, no final, apenas adiciona mais um
número a ele. E todos os outros colegas o observam, com
olhares meio-abertos, cansados, turvos, fracos como o mormaço
de um dia nublado. Eles queriam aquele terno. Não sabem porque
queriam, mas queriam. Normal.
O homem
de terno não tira o terno para trabalhar, mesmo em sua sala,
mesmo sozinho. Na parede da sala quase vazia, há um quadro em
branco. Nele há texto, coisas escritas, parecem importantes.
Mas só parecem. No final, todas aquelas letras são como
números. Não têm personalidade. Se resumem a uma
conta de soma, adicionando mais números ao homem de terno.
Portanto, é um quadro em branco – aquelas letras deixam a
folha vazia de papel mais vazia do que se nada estivesse escrito. São
números de massa negativa. O homem de terno sua em sua cadeira
de couro, pois ele não tira o terno para trabalhar, mesmo
quando está sozinho em seu cubículo a martelar os dedos
em botões. Ele tem medo de sentir-se nu sem a segurança
que o terno oferece – a certeza de ser mais que os outros ao seu
redor, de ter mais um número a exibir. Sem esse número,
sem esse adendo, ele seria convidado à histeria de existir.
Ele teria que confrontar-se e aperceber-se só e, na solidão,
entender-se consigo mesmo. Seria cansativo, ele teria de criar-se um
nome e uma personalidade, talvez. E talvez dar-se cores e formas,
talvez. E, contrapesar de tudo, continuaria só, talvez. Pois
do que adianta o canto do rouxinol para um triângulo isósceles?
Desenhar sorrisos em volta de um cheque? Números continuam
números, e só fazendo sentido em volta de números.
E na cidade grande, todos são números. Ter um nome, uma
personalidade, ânimo, é doença. Vai para além
de tudo que é bom e correto e saudável. Toda medicina
atua em números. O homem de terno continua a trabalhar,
suando, em seu cubículo sem luz. Mas não tem problema,
pois o dia mesmo não tem luz, está nublado.
Em algum
lugar, um pássaro canta. Não sei onde, talvez perto da
Firma X, talvez perto de onde eu esteja. Não o ouço
exatamente, mas acredito ouvi-lo. Seu canto é instintivo e sem
paixão, pois paixão é uma infecção
que necessita de muito espaço na cabeça para se deixar
envenenar. É um curto-circuito de uma mente desnecessariamente
atarefada, quando muitos pensamentos entrechocam-se, e acreditamos
toda nossa existência ser definida por um algo em particular –
como o desejo por algo, vício por algo, toda religião,
crendice e ciência, essas coisas que a humanidade gosta de
acreditar em. Quando apaixonados, somos menos do que costumamos ser.
Matéria negativa, como números vazios, como palavras
vazias numa folha de papel, como o homem de terno suando. A paixão
nos aproxima do verme. Por sorte – ou azar – ou sei lá o
quê – pássaros não podem para a paixão.
Seus cantos são desapaixonados e logo se indistinguem no
silêncio marolante da cidade, de carros, de ônibus, de
suspiros pesados de números em caminhada para inúmeras
Firmas X. Pássaros apenas cantam, e um pássaro, em
algum lugar que eu não saia onde seja, canta um pássaro.
Sua árvore é um último ponto verde em meio ao
cemitério de cinza de edifícios. Daqui há dois
anos, irão derrubar a árvore e colocar uma estátua
no lugar. Em vinte anos, a estátua irá desbotar e
homens de terno irão querer mudá-la por outra. Em
cinquenta anos, o próprio concreto onde o pedestal da estátua
está irá ceder e cair por causa de má-construção
por parte de outros homens de terno. Curiosamente, nenhuma mulher de
terno esteve nesse trabalho. Existem razões para isso, mas o
canto imaginário do pássaro me impede de concentrar a
mente nestas mulheres igualmente imaginárias. Mas não
me troço por isso, elas seriam tão igualmente
incompetentes quanto os homens. No final, Homem e Mulher são
apenas nomes. E ninguém tem nome nas cidades, somente números.
O dia
está nublado. Não vai chover, tenho certeza. Mas já
tive certeza de outras coisas antes. Ter certeza é um convite
ao desastre. Não ter certeza, um convite ao à
catástrofe. Tenha semi-certeza, esse é o caminho do
meio. Não que o meio seja bom. Na maioria das vezes, o meio
apenas leva a um muro. Mas na cidade, tudo é muros. Em cada
muro, famílias de objetos se esvaziam a cada dia. A própria
ideia de família já é ultrapassada, mas como
aprenderemos a contar se não tivermos famílias? A
matemática social é uma ciência estranha, mas
todos as percebemos instintivamente. Como a canção
desapaixonada do pássaro, cantamos desapaixonadamente o nosso
instinto numérico.
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