segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Animalia (2) - O corvo, o cervo e a coelha


(2)

O cervo ia à frente do grupo, sua galhada de cabelos ondulando aos sabores do vento. Atrás vinha a coelha, com passos curtos e rápidos. E no fim da fila, vinha o corvo em silêncio. A madrugada se aproximava, e eles ainda nem começaram a se divertir.

'Bren', perguntou a coelhinha cortando o silêncio, 'Para onde vamos mesmo?', perguntou a coelha com uma voz fina e pequetita. 'Para o Lupercal, Natasha', respondeu o cervo.

'No Lupercal? Mas é onde ficam os lobos, não?', comentou Natasha, sua voz falhando.

'Na verdade, os lobos costumam ficar pelos Lupanares', pontuou o corvo.

'É, mas os dois lugares são bastante próximos um do outro!', argumentou a coelha.

'Pois é', o cervo riu, 'E eu estava mesmo afim de cruzar caminho com uma loba. Quem sabe eu tenha sorte hoje?'

Mas a coelha Natasha não gostou muito daquela ideia. Encontrar-se com lobos parecia ser algo assustador. Na verdade, toda essa caminhada pelas ruas da Animalia era uma ideia quase que revulsiva para ela. Mesmo assim, cá estava ela, pronta para caçar. Usava uma sainha bem curta e acetinada, com estilo agressivo e pontas ousadas. A saia deixava à mostra grande parte de suas longas e bem talhadas pernas. Porém, toda essa aparência de marra e atitude ficava só como faixada, pois qualquer um podia ver a timidez transbordando naquela coelhinha. Ela mantinha os ombros arqueados para baixo, formando uma elipse murcha, e toda hora apertava os dedos da mão esquerda com insegurança. Seus olhinhos rosados andavam de um lado para o outro, como o medo infantil de que estivesse fazendo algo errado, feito comer a sobremesa antes da refeição ou ficar acordada até o horário indevido. Assim, vestia aquela saia curta como um escudo, um reforço para empoderá-la com um pouco mais de atitude e determinação. Com as coxas de fora, pisava forte, como se com tais pisadelas pudesse esmagar sua timidez e mostrar-se completamente forte e cheia de si. O resultado final era como uma caricatura grosseira e cômica, com Natasha samborilando para lá e para cá nos paralelepípedos disformes das ruas escuras.

Na rua ao lado deles, o bando de cães e gatos dançava no escuro, todos completamente absortos em seus movimentos. No centro, a cadela e a gata se deixavam perder uma nos cabelos da outra, suas formas se dissolvendo no escuro. 'Já é a terceira vez que vejo esse grupo de cães e gatos se agarrando', riu-se o corvo, apontando com o bico o bando de animais a se tocar na rua à frente'.

'Antes de reclamar, bem que você podia fazer alguma coisa para ajudar, não é Kish?', falou o cervo Bren. 'Por que não abre essas asas e voa um pouco para dizer onde nós estamos?'.

'Nenhuma asa voa mais alto que a noite em Animália', riu o corvo, 'Se eu alçar voo, me perderei para além de qualquer retorno. Porém, creio que posso ser de um outro auxílio', e virando-se para o grupo de cães e gatos, grasnou, 'Senhoritos e senhoritas, será que poderiam nos ajudar?'.

Os cães e gatos pararam subitamente o que faziam e fitaram, um tanto perplexos, o trio de animais à frente deles. Os cães repuxaram os cantos das bocas e mostraram os dentes, desgostosos por terem tido o lazer deles perturbado de forma tão deselegante. Já os gatos, em contrapartida, estavam curiosos, arriscando um sorriso ou dois. Na verdade, quem mesmo respondeu a Kish foi a gata no centro da roda, depois que conseguiu libertar sua língua dos beijos da cadela que a agarrava.

'Há muitas ajudas que podemos dar', a gata sorriu. Vestia uma camisa bastante larga que quase lhe servia de vestido, indo logo acima de seus joelhos. A gola larga deixava à mostra a argola do sutiã preto que despontava bem no escuro, visto que ela estava diretamente abaixo de um poste de luz. Sua pelagem era malhada de branco e marrom. 'Mas eu me pergunto que tipo de ajuda três estranhos assim poderiam estar procurando à essas horas, logo na entrada das portas da madrugada?'.

'Ah, estamos procurando o caminho para o Lupercal', falou despretensioso o Kish. 'Não queremos atrapalhar a diversão de vocês mais do que já atrapalhamos, portanto só nos diga se nos poderia apontar o caminho que nós logo seguiremos viagem'.

Os olhos elípticos da gata faiscaram. 'Claro que podemos dizer para onde os três viajantes devam seguir – quem melhor que gatos e cães de rua para falar a linguagem das portas e das janelas, dos becos e das vielas?'. E então, libidinosamente, a gata escorregou os dedos por seu próprio pescoço e desceu até a altura de sua barriga. 'Mas, claro, toda informação tem um preço que deve ser pago na medida da pele'.

Do outro canto da rua, Natasha engoliu em seco e comprimiu com força os dedinhos de sua mão. Um cão olhava fixamente as suas canelas torneadas, enquanto que um gato não conseguia desviar os olhos de sua cintura fina. 'Eu não gosto disso', falou em tom baixinho, querendo só que seus amigos ouvissem. Mas os ouvidos sensíveis dos gatos conseguiram captar o tremer de sua voz, e todos miaram.

'Por favor, não precisam se incomodar para tanto. Iremos ser apenas um trio de desengonçados. Afinal, que podem fazer um cervo, uma coelha e um corvo para um grupo de cães e gatos? Não queremos criar problema', Kish tentou novamente contornar a situação. 'Apenas nos digam para onde devemos seguir que iremos alegremente'.

'Mas queridos, tomaram a situação de forma avessa, seguraram a cauda pela cabeça', riu a gata, dominante. Com o pulso desmunhecando femininamente, continuou, 'Adoramos desengonçados entre nossas patas, vacilando, suspirando em ritmos tortos, com as cinturas remexendo sem jeito, fofas, inocentes, ingênuas. Gostamos de nos enroscar pelas pernas estrangeiras e fazê-las dobrar pelo nosso jeito, pela nossa marra, pelas nossas garras. Das sete mil maneiras de se fazer um animal gemer, um gato conhece sete mil e uma'. Conforme a gata falava, os outros gatos se espreguiçavam e alongavam com movimentos elásticos e sensuais, olhando atravessados o trio do outro lado da rua.

Aproveitando que a gata tinha mudado o foco de sua atenção, a cadela que antes a beijava, tomou a gata pela cintura e mordeu-lhe forte o pescoço, fazendo-a miar altíssimo, quase que caindo num desmaio. 'Não faz diferença conhecer sete mil ou sete maneiras, basta saber apenas uma bem', riu a cadela, segurando o corpo desfalecente da gata que tremia por causa das mordidas. Depois, olhando para os três, ladrou: 'E vocês três desfalcados, tão irremediavelmente perdidos nessa noite que só acaba de começar. Disseram que seguirão o caminho para onde apontarmos, não é?', a cadela abriu sua bocarra num sorriso malvado. 'Pois bem, o Lupercal fica para lá'. E a cadela apontou para um cruzamento escuro, quase que escondido ao fundo urbano. Contudo, para se chegar até lá, era preciso atravessar o grupo de cães e gatos de rua.


Mil olhinhos brilharam no escuro, desejosos, ansiosos. Soltando a gata de seus braços, a cadela caminhou lentamente em direção ao trio, dizendo. 'Como podem ver, amigos, terão de dançar por nós para poderem ir ao seu destino. Portanto, se apressem e se entreguem às presas dos cães e às garras dos gatos. Faz tempo que não provo o beijo de um cervo e o cheiro de um corvo. E, para ser sincera, um pé de coelho não faria mal também'.


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