(2)
O cervo
ia à frente do grupo, sua galhada de cabelos ondulando aos
sabores do vento. Atrás vinha a coelha, com passos curtos e
rápidos. E no fim da fila, vinha o corvo em silêncio. A
madrugada se aproximava, e eles ainda nem começaram a se
divertir.
'Bren',
perguntou a coelhinha cortando o silêncio, 'Para onde vamos
mesmo?', perguntou a coelha com uma voz fina e pequetita. 'Para o
Lupercal, Natasha', respondeu o cervo.
'No
Lupercal? Mas é onde ficam os lobos, não?', comentou
Natasha, sua voz falhando.
'Na
verdade, os lobos costumam ficar pelos Lupanares', pontuou o corvo.
'É,
mas os dois lugares são bastante próximos um do
outro!', argumentou a coelha.
'Pois é',
o cervo riu, 'E eu estava mesmo afim de cruzar caminho com uma loba.
Quem sabe eu tenha sorte hoje?'
Mas a
coelha Natasha não gostou muito daquela ideia. Encontrar-se
com lobos parecia ser algo assustador. Na verdade, toda essa
caminhada pelas ruas da Animalia era uma ideia quase que revulsiva
para ela. Mesmo assim, cá estava ela, pronta para caçar.
Usava uma sainha bem curta e acetinada, com estilo agressivo e pontas
ousadas. A saia deixava à mostra grande parte de suas longas e
bem talhadas pernas. Porém, toda essa aparência de marra
e atitude ficava só como faixada, pois qualquer um podia ver a
timidez transbordando naquela coelhinha. Ela mantinha os ombros
arqueados para baixo, formando uma elipse murcha, e toda hora
apertava os dedos da mão esquerda com insegurança. Seus
olhinhos rosados andavam de um lado para o outro, como o medo
infantil de que estivesse fazendo algo errado, feito comer a
sobremesa antes da refeição ou ficar acordada até
o horário indevido. Assim, vestia aquela saia curta como um
escudo, um reforço para empoderá-la com um pouco mais
de atitude e determinação. Com as coxas de fora, pisava
forte, como se com tais pisadelas pudesse esmagar sua timidez e
mostrar-se completamente forte e cheia de si. O resultado final era
como uma caricatura grosseira e cômica, com Natasha
samborilando para lá e para cá nos paralelepípedos
disformes das ruas escuras.
Na rua ao
lado deles, o bando de cães e gatos dançava no escuro,
todos completamente absortos em seus movimentos. No centro, a cadela
e a gata se deixavam perder uma nos cabelos da outra, suas formas se
dissolvendo no escuro. 'Já é a terceira vez que vejo
esse grupo de cães e gatos se agarrando', riu-se o corvo,
apontando com o bico o bando de animais a se tocar na rua à
frente'.
'Antes de
reclamar, bem que você podia fazer alguma coisa para ajudar,
não é Kish?', falou o cervo Bren. 'Por que não
abre essas asas e voa um pouco para dizer onde nós estamos?'.
'Nenhuma
asa voa mais alto que a noite em Animália', riu o corvo, 'Se
eu alçar voo, me perderei para além de qualquer
retorno. Porém, creio que posso ser de um outro auxílio',
e virando-se para o grupo de cães e gatos, grasnou,
'Senhoritos e senhoritas, será que poderiam nos ajudar?'.
Os cães
e gatos pararam subitamente o que faziam e fitaram, um tanto
perplexos, o trio de animais à frente deles. Os cães
repuxaram os cantos das bocas e mostraram os dentes, desgostosos por
terem tido o lazer deles perturbado de forma tão deselegante.
Já os gatos, em contrapartida, estavam curiosos, arriscando um
sorriso ou dois. Na verdade, quem mesmo respondeu a Kish foi a gata
no centro da roda, depois que conseguiu libertar sua língua
dos beijos da cadela que a agarrava.
'Há
muitas ajudas que podemos dar', a gata sorriu. Vestia uma camisa
bastante larga que quase lhe servia de vestido, indo logo acima de
seus joelhos. A gola larga deixava à mostra a argola do sutiã
preto que despontava bem no escuro, visto que ela estava diretamente
abaixo de um poste de luz. Sua pelagem era malhada de branco e
marrom. 'Mas eu me pergunto que tipo de ajuda três estranhos
assim poderiam estar procurando à essas horas, logo na entrada
das portas da madrugada?'.
'Ah,
estamos procurando o caminho para o Lupercal', falou despretensioso o
Kish. 'Não queremos atrapalhar a diversão de vocês
mais do que já atrapalhamos, portanto só nos diga se
nos poderia apontar o caminho que nós logo seguiremos viagem'.
Os olhos
elípticos da gata faiscaram. 'Claro que podemos dizer para
onde os três viajantes devam seguir – quem melhor que gatos e
cães de rua para falar a linguagem das portas e das janelas,
dos becos e das vielas?'. E então, libidinosamente, a gata
escorregou os dedos por seu próprio pescoço e desceu
até a altura de sua barriga. 'Mas, claro, toda informação
tem um preço que deve ser pago na medida da pele'.
Do outro
canto da rua, Natasha engoliu em seco e comprimiu com força os
dedinhos de sua mão. Um cão olhava fixamente as suas
canelas torneadas, enquanto que um gato não conseguia desviar
os olhos de sua cintura fina. 'Eu não gosto disso', falou em
tom baixinho, querendo só que seus amigos ouvissem. Mas os
ouvidos sensíveis dos gatos conseguiram captar o tremer de sua
voz, e todos miaram.
'Por
favor, não precisam se incomodar para tanto. Iremos ser apenas
um trio de desengonçados. Afinal, que podem fazer um cervo,
uma coelha e um corvo para um grupo de cães e gatos? Não
queremos criar problema', Kish tentou novamente contornar a situação.
'Apenas nos digam para onde devemos seguir que iremos alegremente'.
'Mas
queridos, tomaram a situação de forma avessa, seguraram
a cauda pela cabeça', riu a gata, dominante. Com o pulso
desmunhecando femininamente, continuou, 'Adoramos desengonçados
entre nossas patas, vacilando, suspirando em ritmos tortos, com as
cinturas remexendo sem jeito, fofas, inocentes, ingênuas.
Gostamos de nos enroscar pelas pernas estrangeiras e fazê-las
dobrar pelo nosso jeito, pela nossa marra, pelas nossas garras. Das
sete mil maneiras de se fazer um animal gemer, um gato conhece sete
mil e uma'. Conforme a gata falava, os outros gatos se espreguiçavam
e alongavam com movimentos elásticos e sensuais, olhando
atravessados o trio do outro lado da rua.
Aproveitando
que a gata tinha mudado o foco de sua atenção, a cadela
que antes a beijava, tomou a gata pela cintura e mordeu-lhe forte o
pescoço, fazendo-a miar altíssimo, quase que caindo num
desmaio. 'Não faz diferença conhecer sete mil ou sete
maneiras, basta saber apenas uma bem', riu a cadela, segurando o
corpo desfalecente da gata que tremia por causa das mordidas. Depois,
olhando para os três, ladrou: 'E vocês três
desfalcados, tão irremediavelmente perdidos nessa noite que só
acaba de começar. Disseram que seguirão o caminho para
onde apontarmos, não é?', a cadela abriu sua bocarra
num sorriso malvado. 'Pois bem, o Lupercal fica para lá'. E a
cadela apontou para um cruzamento escuro, quase que escondido ao
fundo urbano. Contudo, para se chegar até lá, era
preciso atravessar o grupo de cães e gatos de rua.
Mil
olhinhos brilharam no escuro, desejosos, ansiosos. Soltando a gata de
seus braços, a cadela caminhou lentamente em direção
ao trio, dizendo. 'Como podem ver, amigos, terão de dançar
por nós para poderem ir ao seu destino. Portanto, se apressem
e se entreguem às presas dos cães e às garras
dos gatos. Faz tempo que não provo o beijo de um cervo e o
cheiro de um corvo. E, para ser sincera, um pé de coelho não
faria mal também'.
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