A coelha recuou um passo. 'O que fazemos?', perguntou num tom perdido, enquanto observava a cadela de quadril largo olhando ávida para si. 'Tenho medo desta cadela, e pavor de seus companheiros que me olham como se já me estivessem a mastigar. Talvez devêssemos procurar outro caminho, outra saída para o Lupercal pois, em verdade, quem pode comprovar que estes animais não nos estejam mentindo?'.
A cadela de quadril largo não gostou do comentário, respondendo num rosnado apicado, 'Em Animália, não há mentiras quando o assunto se trata das linhas da pele e dos ângulos dos gemidos'. A cadela riu-se enquanto à sua volta se reuniam os cães de sua matilha.
O corvo Kish de penas raiadas estalou a língua contra o bico, desdenhoso. 'Como não há mentiras? As maiores mentiras são contadas exatamente por causa da pele e do suor, do desejo de ser caçador e presa. De fato, eu até poderia acreditar estarem mentindo, que tudo isso não passa de uma cilada para nos fazer cair em suas presas e garras,' e o corvo deu uma pausa, ridente, 'Mas sei que gatos e, especialmente, cães não poderiam mentir sobre o Lupercal. O Lupercal onde os lobos habitam. O Lupercal onde as lobas caminham sobre as pedras frias e os lobos uivam acima das guitarras mais agudas. Sei que jamais ousariam mentir assim, pois mentir sobre lobos é convidar o infortúnio para jantar – e, todos sabem, o jantar é muito mais íntimo que o almoço'.
A cadela soluçou uma gargalhada, levando a patinha manhosa à boca de dentes sedentos, 'Pois, está correto, corvo de penas raiadas. Não mentimos sobre o Lupercal, pois ter lobos irados em nossos calcanhares é a última coisa que desejamos. Todos os cães respeitam aqueles que os ensinaram a latir'.
'Quanta doçura, quanta fofura, quanta candura rosada!', disse a gata malhada de branco e marrom, abraçando a cadela de quadril largo pela cintura. 'Quem diria a mais teimosa das cadelas de rua ser tão respeitosa aos seus mais velhos?', e a gata afirmou as patas sobre os seios da cadela, 'Ou será apenas medrosa? Pois afinal, todos sabem muito bem do dito: Todos os cães vão para o céu, mas os lobos vão para onde quiserem'.
Um choque subiu da base da espinha até o topo do pescoço da cadela de quadril largo pelo toque da gata branca e marrom. Mas resistiu. Segurou a vontade que teve de subir sobre a gata e rasgar-lhe a pele da camisa. Ao invés disso, desvencilhou-se do toque dela e virou-se para todos. Com o queixo levantado e a garganta à mostra, falou: 'Não importa os temores dos cães pelos lobos, não importa as mentiras e verdades contadas sob a proteção das sombras. O que importa é o agora, o presente, a noite, a madrugada, o momento entre o suspiro e o gemido'. E ela abriu os braços, como se tentasse tomar nas patas a atenção de todos. 'Todos que para a Animália se voltam, são caçadores e caçados, predadores e presas. E vocês três, deslocados e perdidos na noite, não serão exceção à regra. Também terão de dançar no ritmo do corpo, acompanhar a pulsar do coração dos parceiros. Se quiserem alcançar o Lupercal, terão de alcançá-lo através de nós, por entre nós...por dentro de nós'.
Conforme a cadela gritava suas verdades, olhos furtivos cintilavam nas janelas dos prédios, lobrigando a cena, observando tudo usando o canto dos olhos. Viam com curiosidade, como quem vê algo que não deveria, algo proibido; mas cuja a própria proibição tornava a ocasião irresistivelmente tentadora. De algum lugar, talvez de uma das inúmeras janelas que pontilhavam os paredões de prédios obscurecidos pela noite, um som de notas graves preencheu o silêncio. Fazia uma música lenta e cadenciada, soturna e malemolente. Um blues antigo que faz os quadris descerem dois degraus abaixo dos joelhos. Comovidos pelo som, gatos e cães pulsaram no ritmo da música.
A coelha Natasha de pernas desnudas olhou temerosa para os colegas. O cervo Bren de galhadas escuras mantinha-se altivo em sua camisa de mangas longas e sua calça jeans porfiante. O corvo Kish de penas raiadas estava em silêncio, apesar de sustentar um risado nos lábios. Natasha pensava em desistir, voltar para sua toca até que o sol nascesse novamente e os uivos noturnos da Animália não oprimissem seu coraçãosinho. Mas quando ameaçou virar de costas, o corvo pousou a asa em seu ombro, sorrindo com genuína
O corvo travou olhos com a cadela de quadril largo e, sem titubeio, foi andando destemido e reto na direção dela. A cadela, curiosa com tamanha ousadia, permaneceu desafetada, uma mão curvada sobre a cintura. Da escuridão, um cão cruzou seu caminho, mostrando-lhe os dentes e peitoral, mas o corvo nem desviou os olhos de seu objetivo. Então um gato e uma gata passaram por suas pernas, mas o corvo se não demoveu. Manteve os olhos fixos e vidrados na cadela, todas as outras distrações não o conseguiam afetar. Cada passo dado firmando-se forte nos paralelepípedos incertos da rua, seguindo o ritmo do baixista invisível que tocava a melodia soturna vinda de trás das janelas dos enormes prédios.
Logo se encontrava o corvo no coração dos gatos e cães, face a face com a cadela de quadris largos. A gata malhada de marrom e branco balançava a cauda para lá e para cá, deleitosa e desamuada com a situação. 'Não imaginei ver nessa noite um corvo com tamanha prepotência', disse a cadela quebrando o silêncio tenso dos olhares que se encontravam. O corvo deu ombros, 'Fala como se o que eu faço fosse algo de extraordinário'. A cadela trinou a voz com desfaçatez, 'E você fala como se fosse algo pouco aproximar-se de gatos e cães de rua assim, sem titubeios ou temores'.
'Sempre fui defensor da ideia de que, para se temer e titubear algo, deve-se haver razões para tanto', falou o corvo, dando uma olhadinha para a esquerda, para a direita e, com extrema espontaneidade, adicionando, 'E eu não entendo qual perigo haveria para mim aqui, agora'. Os cães ladraram ultrajados, os gatos eriçaram até os pelos dos calcanhares. A gata malhada segurou um risinho e, divertindo-se, atentou para a cadela. Esta então estava quase bufando de raiva. 'Como ousa? Não vê perigo algum aqui? Está rodeado por todo canto daqueles que te querem devorar pena e pele! E ainda vem falando assim, tão despojado como se nada fôssemos? Ora, ora! Devíamos todos cari sobre ti, corvo, e provar dessa tua pele escura até torná-la lívida pela falta de ar, com abraços, apertos, mordidas e beijos'. O corvo deu novamente ombros, 'Meu gosto é amargo para os desafeiçoados, meu amar é todo espetado por causa de minhas penas. Se me morderem sem o devido cuidado, terão para sempre o paladar tornado azedo'.
'Já tive corvos antes entre minhas pernas, entre minhas coxas e canelas', riu a cadela, 'Não será o primeiro, nem mesmo o último. Logo, não temo seu gosto nem me assusto com sua pelagem escura'. O corvo abriu bem a arcada de suas asas, 'Pois devia. Estas minhas penas mais escuras que a escuridão da lua podem te fazer perder o ar com um único beijo'. A cadela retorquiu, 'Promessas vazias, promessas tolas. Não quero um beijo teu somente, corvo. Quero obrigar você a te empoleirar sobre meus ombros fortes, e obrigar-te a fechar as asas em meu colo largo. Quero seu suor em meu pescoço e seu crocitar em meus ouvidos'. Conforme ela falava, sua voz ganhava timbres sedutores, ela se aproximava, suas mãos agarravam os braços do corvo, apertavam-lhes. Os cães da matilha sorriam e uivavam, circundando os dois que dançavam naquela escuridão no começo da madrugada.
O corvo permaneceu quase inabalado, olhando ainda com extremo auto-controle os olhos escuros da cadela. 'Tem medo de minha proposta? Medo de que meu beijo mostre-se mais do que pode aguentar?', disse num tom de desafio. A cadela, que já estava com as coxas grossas entre as pernas finas do corvo, pareceu curiosa. E então, olhando altiva sobre o corvo, riu-lhe, 'Bahssina nada teme'. E, colocando as mãos na nuca do corvo, ficando os dedos no pescoço dele, disse, 'Vamos, corvo, me beija'.
Sentindo a pegada esmagadora da cadela, o corvo quase desabou sobre as pernas. Mesmo assim, segurou-se, o bafo quente da cadela cheirando acre e doce em seu bico. 'Beijo, sob uma condição. Se meu beijo vencer-te por completo, terei eu e meu grupo passagem livre'. A cadela vincou o rosto de incredulidade, puxando com força o corvo pelos cabelos, encostando a testa dela na dele, 'Uma presa indefesa não tem direito a fazer qualquer exigência, meu bem'. O corvo deixou um sorriso agudo feito agulha despontar no rosto, 'E quem disse que estou indefeso?'. E subiu as mãos pelas coxas da cadela, a apertando. A cadela tremulou um tantinho, mas manteve a postura alta e, rindo alto, disse, 'Aceito sua condição, corvo raiado. Agora, beija!'.
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