sábado, 20 de junho de 2015

Conto - Um vampiro em meu quintal



Há um vampiro em meu quintal. A neve se acumula em seus pés, formando um monte desajeitado em seus tornozelos.


“Me deixe entrar”, ele diz com sua voz fina dedilhando o ar, perdendo-se entre os flocos de neve. A ponta de meus dedos ferem as palmas de minhas mãos, indecisas. Meus olhos vacilam desfocados num dilema pessoal.

“Me deixe entrar”, repete, lamentoso. Ainda de pé, prostrado, ereto e rijo feito lápide, pálida e desiludida. Seu peito não se move, não respira, somente o vento e o frio fazendo mexer as suas roupas pretas que se confundem na escuridão noturna. Sua silhueta esquálida só faz aparecer através de um poste de luz branca, fria e hospitalar. De resto, em todo o seu redor, há somente sombra.

“Despacha-te”, digo chocalhando a voz. “Não tenho humores para você. Meu pescoço ainda dói da última vez que escutei teu riso”.

Ele se aproxima, passos marejados de culpa ou receio. Cada pé carregando os cravos de todo o peso de uma vida que só conhece o mundo até o final da própria rua.

“Me deixe entrar”, re-repete o vampiro, as mãos de linho pálido e fino rabiscando em minha janela. “A noite é fria, escura e funda. Meu coração anseia por um abrigo”.

“Mas o frio não incomoda os mortos, o escuro não impede seus passos, nem os amedronta o abismo. Se o vazio de seu peito deseja algum descanso, então pelo mesmo caminho por onde veio, pode retornar”, tentei que as palavras soassem com peso de ferro, mas chegavam em minha garganta como cacos de vidro.

Os olhos dele, feito as penas de um corvo, debruavam dançarinos em meu rosto. As lapelas de seus cílios gesticulavam todas as palavras ditas em silêncio desejado. Sobe um calafrio arranhado pela espinha, que aperta as laterais do peito na altura das costelas, quando o corpo, arfando, sente uma necessidade aguda de vaporejar gemidos.

“Me deixe entrar”, sua repetida voz me novamente atacou. Meu bafo rasgado e rouco soluçou amargo de impasse.

“Não tenho mais dentes com que sorrir, tirou de mim até a última folha. Tudo em que um dia havia sido vida, agora é somente uivo e vento, neve e gelo”. Ergui o olhar e sustentei no dele. Um silêncio intenso pontuou a resolução do momento. Mas ele esticou os lábios, gaiato, num malabarismo coquete. Ignorou todo meu ser que se partia no esforço de permanecer distante e novamente disse: “Me deixe entrar”.

Bati com a testa contra o vidro da janela, procurando sustento na estrutura do céu. “Mas assim, você irá me morder. Tirar de mim até a última moeda de sangue”.

“Ah, sim”, concordou o vampiro, desleixadamente. “Rasgarei do seu corpo e beberei do teu espírito. Pegarei todos os números de seu programa e os replicarei . Quero o amarelo de seu cabelo em meus olhos, o escuro de sua pele em meu sopro”.

Reluto. “Não posso deixar que você faça isso”. Uma ameaça tola. “Não quero deixar que você faça isso”. Uma mentira, balela. Balanço a cabeça, dizendo: “Vá embora”. Levanto os olhos e complemento: “Por favor”.

O vampiro encolhe os ombros. A lápide de seu corpo diminui a cada passo. A neve é empurrada por seus pés como o lixo mais puro de um desconhecido. À distância, no escuro, somente sua silhueta ameaça a desolação do inverno. E meus olhos, sem piscar, sempre observando, atentos. Ele estaca um último momento, tornando-se volta a vez para mim, e olhares se encontram, em silêncio.


Há um vampiro em meu quintal...e agora, no meu quarto.

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