Há um vampiro em meu
quintal. A neve se acumula em seus pés, formando um monte
desajeitado em seus tornozelos.
“Me deixe entrar”,
ele diz com sua voz fina dedilhando o ar, perdendo-se entre os flocos
de neve. A ponta de meus dedos ferem as palmas de minhas mãos,
indecisas. Meus olhos vacilam desfocados num dilema pessoal.
“Me deixe entrar”,
repete, lamentoso. Ainda de pé, prostrado, ereto e rijo feito
lápide, pálida e desiludida. Seu peito não se move, não respira,
somente o vento e o frio fazendo mexer as suas roupas pretas que se
confundem na escuridão noturna. Sua silhueta esquálida só faz
aparecer através de um poste de luz branca, fria e hospitalar. De
resto, em todo o seu redor, há somente sombra.
“Despacha-te”, digo
chocalhando a voz. “Não tenho humores para você. Meu pescoço
ainda dói da última vez que escutei teu riso”.
Ele se aproxima, passos
marejados de culpa ou receio. Cada pé carregando os cravos de todo o
peso de uma vida que só conhece o mundo até o final da própria
rua.
“Me deixe entrar”,
re-repete o vampiro, as mãos de linho pálido e fino rabiscando em
minha janela. “A noite é fria, escura e funda. Meu coração
anseia por um abrigo”.
“Mas o frio não
incomoda os mortos, o escuro não impede seus passos, nem os
amedronta o abismo. Se o vazio de seu peito deseja algum descanso,
então pelo mesmo caminho por onde veio, pode retornar”, tentei que
as palavras soassem com peso de ferro, mas chegavam em minha garganta
como cacos de vidro.
Os olhos dele, feito as
penas de um corvo, debruavam dançarinos em meu rosto. As lapelas de
seus cílios gesticulavam todas as palavras ditas em silêncio
desejado. Sobe um calafrio arranhado pela espinha, que aperta as
laterais do peito na altura das costelas, quando o corpo, arfando,
sente uma necessidade aguda de vaporejar gemidos.
“Me deixe entrar”,
sua repetida voz me novamente atacou. Meu bafo rasgado e rouco
soluçou amargo de impasse.
“Não tenho mais
dentes com que sorrir, tirou de mim até a última folha. Tudo em que
um dia havia sido vida, agora é somente uivo e vento, neve e gelo”.
Ergui o olhar e sustentei no dele. Um silêncio intenso pontuou a
resolução do momento. Mas ele esticou os lábios, gaiato, num
malabarismo coquete. Ignorou todo meu ser que se partia no esforço
de permanecer distante e novamente disse: “Me deixe entrar”.
Bati com a testa contra
o vidro da janela, procurando sustento na estrutura do céu. “Mas
assim, você irá me morder. Tirar de mim até a última moeda de
sangue”.
“Ah, sim”,
concordou o vampiro, desleixadamente. “Rasgarei do seu corpo e
beberei do teu espírito. Pegarei todos os números de seu programa e
os replicarei . Quero o amarelo de seu cabelo em meus olhos, o escuro
de sua pele em meu sopro”.
Reluto. “Não posso
deixar que você faça isso”. Uma ameaça tola. “Não quero
deixar que você faça isso”. Uma mentira, balela. Balanço a
cabeça, dizendo: “Vá embora”. Levanto os olhos e complemento:
“Por favor”.
O vampiro encolhe os
ombros. A lápide de seu corpo diminui a cada passo. A neve é
empurrada por seus pés como o lixo mais puro de um desconhecido. À
distância, no escuro, somente sua silhueta ameaça a desolação do
inverno. E meus olhos, sem piscar, sempre observando, atentos. Ele
estaca um último momento, tornando-se volta a vez para mim, e
olhares se encontram, em silêncio.
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